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O antagonismo move o mundo

Foto do escritor: Renê RuggeriRenê Ruggeri

Era 1784 e Kant já entendia que o antagonismo era o propulsor da história humana. O texto é clássico: “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”.

Como sei que poucos procurarão a leitura, cito a quarta proposição do texto e parte de sua explicação:

 

O meio de que a natureza se serve para obter o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo destas na sociedade, na medida em que ele se torna, finalmente, causa de uma ordem legal das mesmas disposições.

Entendo aqui por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade. Esta disposição reside manifestamente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas disposições naturais. Mas tem também uma grande propensão para se isolar, porque depara ao mesmo tempo em si com a propriedade insocial de querer dispor de tudo a seu gosto e, por conseguinte, espera resistência de todos os lados, tal como sabe por si mesmo que, da sua parte, sente inclinação para exercer a resistência contra os outros.

 

Se não houver nada ou ninguém que se oponha a qualquer coisa, tudo permanecerá como está, sem retrocesso, mas também sem progresso. O antagonismo é, portanto, necessário e benéfico. Mas é também perigoso, pois as mudanças que provoca nascem destas disputas entre opiniões diferentes.



Na sexta proposição o alerta para a dificuldade é colocado, apontando o próprio homem como a grande dificuldade para um estado geral de equilíbrio.

 

[...]de um lenho tão retorcido, de que o homem é feito, nada de inteiramente direito se pode fazer. Apenas a aproximação a esta ideia nos é imposta pela Natureza.

 

Já se foram 240 anos e evoluímos. Bem pouco, é fato, mas evoluímos. Kant previa a constituição de uma federação de nações e hoje, realmente, vivemos em um mundo globalizado com instituições supranacionais (embora sujeitas às mesmas dificuldade que qualquer instituto humano possui) que tentam estabelecer um estado mais geral de equilíbrio.


Se o equilíbrio é difícil de ser obtido num pequeno grupo de pessoas, quando falamos de equilíbrio mundial, o desafio é proporcional. Mas é basicamente o mesmo: o antagonismo (que é também o propulsor da mudança). Antagonismo entre dois indivíduos, entre dois grupos, entre duas nações etc.


É interessante e até surpreendente notar que desse antagonismo derivam a tendência do homem e suas comunidades para o armamento e a guerra, mas também sua disposição de encontrar o equilíbrio, receosos dos males que resultam do confronto bélico.


A esse respeito, referindo-se ao confronto entre nações, mas que também se aplicaria a grupos menores, Kant explica:

 

[...] também os males daí provenientes constrangem a nossa espécie a encontrar na resistência mútua dos diversos Estados, saudável em si e nascida da sua liberdade, uma lei de equilíbrio e um poder unificado que lhe dá força.

 

Ocorre que o entendimento rumo a um estado de equilíbrio pressupõe a disposição dos antagonistas na busca desse estado. Esse novo estado nasce da exposição dos interesses das partes, mas, sobretudo, da capacidade racional de encontrar a harmonização das opiniões. Kant já dizia que a racionalidade é a marca da humanidade e qualquer mudança que não caminhasse para essa plena realização da racionalidade humana num estado de equilíbrio geral seria contrária à Natureza.

 

A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que ultrapassa o arranjo mecânico da sua existência animal, e que não compartilhe nenhuma outra felicidade ou perfeição excepto a que ele, liberto do instinto, conseguiu para si mesmo, mediante a própria razão.

A natureza nada faz em vão e não é perdulária no emprego dos meios para os seus fins. Que tenha dotado o homem de razão e da liberdade da vontade, que nela se funda, era já um indício claro da sua intenção no tocante ao seu equipamento.

 

Por fim, essa plena realização da humanidade num estado de equilíbrio geral, promovido pela racionalidade e que garanta a liberdade, só é possível quando o homem se entende como espécie e não como indivíduo. Como não pode renunciar a sua condição de individualidade, que o limita, e como a realização plena de sua natureza somente pode ser atingida quando se entende como espécie, deduz-se que esta consideração prioritária do homem como coletivo (espécie) é fruto e semente do desenvolvimento de sua racionalidade.


Mais que isso, a compreensão de coletivo extrapola o espaço fundamentando-se também no tempo, pois o homem (indivíduo) finda e a espécie (coletivo) não. É uma percepção que depende do aprendizado entre gerações. Diz a segunda proposição de Kant:

 

No homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo.

A razão numa criatura é uma faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece limites alguns para os seus projectos. Não actua, porém, de modo instintivo, mas precisa de tentativas, de exercício e de aprendizagem, para avançar de forma gradual de um estádio do conhecimento para outro. Pelo que cada homem teria de viver um tempo incomensuravelmente longo para aprender como deveria usar com perfeição todas as suas disposições naturais; ou, se a natureza estabeleceu apenas um breve prazo à sua vida (como realmente acontece), ela necessita de uma série talvez incontável de gerações, das quais uma transmite à outra os seus conhecimentos, para que finalmente o seu germe, ínsito na nossa espécie, alcance o estádio de desenvolvimento que é de todo adequado à sua intenção.

 

Antagonizar é preciso e nasce da liberdade individual, mas transformar o mundo rompendo com o que é coletivamente construído só é racional quando as novas posições antagônicas estão legitimadas pelo próprio coletivo transformado. E a legitimação de algo num coletivo é um processo histórico e natural. Se assim não for, trata-se de um antagonismo individual, normalmente mais repleto de instintos, impulsos e percepções particulares e menos provável de conter a racionalidade das construções coletivas que perduram no tempo (muitas vezes não acessível a um indivíduo com perspectiva mais restrita).


Transformar o mundo depende de legitimar proposições no coletivo afetado. Tê-las legitimadas fora do coletivo afetado reforça o antagonismo, pois não é percebido como algo desenvolvido, mas tentativa de imposição externa. A tentativa de impor percepções externas de mundo afronta a natureza da racionalidade como algo desenvolvido coletivamente. Afinal, pertencendo a um coletivo, para entender algo como coletivo é preciso participar desta concepção. Ou seja, o antagonismo que vem de fora afronta a própria Natureza.


Em suma, o antagonismo estimula o progresso, mas o que o torna uma realidade sustentável numa comunidade é a legitimação de uma construção racional de um entendimento, processo necessariamente coletivo.

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