A frase destacada no título deste texto é atribuída a Aristóteles e tomada como fonte de sabedoria. Costuma ser citada com uma outra: “Excelência, então, não é um evento, é um hábito”. E são repetidamente (gostei do trocadilho) citadas por gente influente (evitei o termo influencer só pra não gerar polêmica) como se tivesse inspiração em Aristóteles. Soa bem, não?
Mas há um problema: embora tais frases possam ser, com algum esforço interpretativo, associadas ao pensamento de Aristóteles, elas nunca foram pronunciadas ou escritas por ele. São, na realidade, uma interpretação conveniente para expressar uma ideia de quem a usa e não do próprio pensador grego. Mas, por ser uma interpretação, não pode prescindir do contexto apropriado para refletir o que pretende significar. Como toda frase, sobretudo em contextos datados de 2300 anos atrás, não pode ser simplesmente apartada do resto da obra sem perdas significativas, ou com risco de manipulação equivocada (consciente ou não) do seu conteúdo.
A segunda frase parece não gerar muita discrepância, pois traz uma ideia, aparentemente, mais ou menos óbvia. Outro ditado popular diz algo similar: “a prática faz a perfeição”. Per-feito significa feito completamente, sem faltar nada. Excelência tem a ver com estar no topo, ser colocado no alto, em destaque (pesquisem as etimologias). Neste aspecto a frase atribuída a Aristóteles teria um pouco mais de consistência em relação ao significado pretendido dentro de sua obra. Mas só seria realidade se a prática ou o hábito não estiver equivocada (o que, aliás, é abordado na obra de Aristóteles, até mesmo como tópico principal em algumas partes). Contudo, se é preciso aplicar correções gradativas à prática, a perfeição e a excelência decorrem mais dessas intervenções do que do mero exercício da prática (só pra frisar a obviedade da interpretação correta, essa moderação é tópico também abordado na obra de Aristóteles).
Essa análise poderia se estender, mas foquemos a primeira frase: “você é o que repetidamente faz”.
Há 2300 anos, nas cidades gregas, o espírito de cidadania era uma tônica da cultura. Todo cidadão grego nascia e vivia para a pólis, a cidade (que, naquela época, tinha status de Estado). Cada um se incumbia de uma função que contribuísse de alguma forma para aquele modo de vida. E se comprometia com isso como parte de um sistema. Aristóteles falaria da perícia de cada um a serviço de sua realização plena na sociedade/cidade (o que, naquele sistema de pensamentos e conceitos, praticamente se confundia com a realização da essência da vida de cada um).
Veja que o individualismo era, por assim dizer, secundário. Certamente que havia, mas as pessoas se pautavam, social e profissionalmente, pelo espírito coletivo da cidadania. O valor dado à vida em favor da cidade era tal que o próprio Aristóteles, por não ser ateniense, teve que abrir sua escola fora dos limites da cidade, afinal a interpretação é de que ele não teria culturalmente o comprometimento com Atenas como deveria ser (Aristóteles era macedônico).
O pensamento filosófico que se formou à época possuía também em sua fundamentação a ideia de cosmos, um sistema ordenado, harmonioso e regido por princípios, no qual cada componente tem papel bem definido. Essa ideia remonta aos pré-socráticos. Aristóteles, à sua maneira, não fugiu dessa ideia fundamental e, portanto, não podemos simplesmente negligenciá-la ao interpretá-lo.
Ora, se você vive para a cidade e tem uma função que lhe é naturalmente própria, pois você compõe o cosmos, então para chegar ao seu potencial, você deve buscar a excelência nessa sua função. Você se torna, então, um guerreiro virtuoso quando se aprimora na arte ou ofício da guerra. Será um tapeceiro virtuoso, ao se aperfeiçoar na arte da tapeçaria. E assim por diante. Não esqueçamos que isso é feito em prol da cidade, como sua função ou papel necessário ao equilíbrio cósmico.
Ora, se cada pessoa possui um papel natural no cosmos e vive sua vida para isso, ao atingir a excelência nisso estará completo. Excelência significa subir ao lugar mais alto que se possa chegar. Olha aí a perfeição, vossa excelência! Atingir a excelência é exatamente realizar todo o potencial que lhe é natural. Desenvolver habilidade é o caminho, mas atingir a excelência, nessa ideia, tem a ver com a plena realização do potencial. Não se trata apenas da habilidade, mas de uma realização em todas as perspectivas daquele ente, componente do cosmos. E isso só é possível, se admitirmos por premissa, que a função a que cada pessoa é encaminhada pela vida na cidade reflete a sua essência. Os gregos acreditavam nisso e viviam assim!
Mas pense nos dias de hoje! Todos fazemos aquilo que reflete a nossa essência? Você conhece alguém infeliz com seu trabalho, ou com sua vida social, ou mesmo com sua vida pessoal? Aposto que sim!
Uma pessoa nesta situação descolada da sua essência pode atingir a excelência, se entendermos a excelência como algo que vai além da mera habilidade? Atingir a excelência seria como realizar o máximo da sua vida, atingir a melhor configuração a que você poderia chegar (na perspectiva do cosmos, ou, em jargão mais contemporâneo, seu propósito). Completo, perfeito!
Portanto, preste atenção: você é o que repetidamente faz, apenas se você faz o que você é na essência, pois esse desenvolvimento o colocaria no caminho da sua própria excelência, da sua plenitude, da sua perfeição. Mesmo que você não esteja ainda no ponto mais alto, você fará aquilo que reflete seu ser em evolução. Mas é preciso saber o que somos na essência para traçar esse caminho.
Essa e mais uma infinidade de frases descontextualizadas, ou atribuídas a pensadores, se mal utilizadas, por desconhecimento ou conveniência, nos fazem crer em ideias de algum intérprete, como se fossem dos grandes expoentes do pensamento humano. Quer saber o que pensou Aristóteles, ou o que ele diria em relação a algum tema? Leia diretamente nas obras dele (que são gratuitas, diga-se de passagem). Isso vale para qualquer pensador, ou qualquer pessoa. Acreditar no que pensou fulano, porque ciclano lhe contou é quase como dar ouvido à fofoca.
Em suma, Aristóteles não disse que você é o que repetidamente faz. Ele talvez tenha pensado que você deve fazer repetidamente o que você é.
Será que ele diria para você consumir seu tempo se descobrindo em vez de desenvolvendo alguma perícia estranha? Aliás, isso seria mais coerente com a tradição socrática do “conhece-te a ti mesmo”. E por falar nisso, Sócrates disse mesmo isso?
Pense por si, não por qualquer um que grava vídeos de um minuto nas redes sociais.
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