A difícil coerência entre discurso e ação
- Renê Ruggeri

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A coerência entre discurso e ação em uma pessoa é muitas vezes tomada como requisito de confiabilidade. Eventualmente a incoerência é interpretada como imaturidade, ou falsidade. Essas interpretações acertam e falham, talvez com a mesma frequência. Ou seja, a incoerência entre discurso e ação não é, sozinha, um indicativo que nos permita julgar alguém, a menos, claro, que as constatações desta incoerência componham um conjunto mais amplo e denso de observações.
A questão que queremos abordar aqui é que esta incoerência é comum e natural, mas precisa ser observada em que condições ocorre para ser interpretada mais corretamente.
O desenvolvimento integral do indivíduo, incluindo suas formas de pensar, sentir e agir, ocorre segundo várias linhas de desenvolvimento e não no mesmo ritmo em cada uma.

Para tornar tudo mais complexo, como não poderia deixar de ser ao se pensar no ser humano, essas evoluções são condicionadas por circunstâncias externas. Isso significa que uma pessoa pode estar num nível de desenvolvimento para certo contexto e noutro, se alterado o contexto. Cada linha de desenvolvimento — como as cognitivas (pensar), emocionais (sentir) e comportamentais (agir) — pode evoluir em ritmos distintos, sem necessariamente acompanhar o mesmo nível nas demais.
Assim, a coerência entre o que pensamos, sentimos e fazemos não é um ponto de chegada, mas um estado dinâmico, que se reorganiza conforme o contexto e o grau de consciência presente. E tudo vai se trasnformando com o desenvolvimento contínuo. Nada que envolve o ser humano parece ser mesmo simples o suficiente.
As linhas e desenvolvimento, os níveis de desenvolvimento e até a influência “circunstanciais externas” são encampados pela Teoria Integral (Ken Wilber) aplicada ao desenvolvimento humano, emprestados, por exemplo, da Teoria da Dupla Espiral Dinâmica (Cowan, Beck e Graves).
O discurso de uma pessoa, quase sempre, é definido por sua forma de pensar. Não estamos aqui considerando pessoas em estado alterado de consciência, quando seus pensamentos estão afetados por percepções distorcidas (a pessoa tomada por ódio, paixão, ou embriagada, por exemplo). Nestes casos a pessoa está a caminho da alucinação e seu entendimento não é da realidade, mas do mundo que fantasia em sua mente.
Já a ação pode ser fortemente influenciada pelas emoções e sentimentos. Algumas vezes o discurso antecede a ação, como se a fosse guiar. Noutras, o discurso parece querer justificar uma ação já realizada. E isso é comum para qualquer pessoa.
A sequência entre pensar, sentir e agir, portanto, não é estável. Em contextos reflexivos ou deliberados, tende a predominar o pensar–sentir–agir; em contextos emocionais ou impulsivos, o sentir ou o agir podem preceder o pensamento, que então opera como interpretação ou racionalização posterior. Essa alternância é parte natural do funcionamento humano e está diretamente relacionada ao nível de consciência e à complexidade com que conseguimos lidar nas situações (lembrando que isso varia com o contexto).
Há contextos em que pensamos antes de agir e esses pensamentos condicionam nossos sentimentos que energizam a ação (vale aqui ao leitor resgatar a ideia de energia psíquica, para evitar uma interpretação simplória). Se você faz algo que quer efetivamente fazer, a energia direcionada é sensivelmente maior que os casos em que se faz por mera obrigação, mas sem vontade (que é um sentimento). Sempre há energia (trabalho é energia em transformação), mas sua geração tem fontes diferentes (amor e ódio, por exemplo).
Sabemos também que cada pessoa é afetada pelo mundo de forma diferente porque o interpreta e percebe à sua própria maneira. Alguns se emocionam com uma cena, outros não. Em geral se atribui a emoção à cena, mas em verdade a causa é a percepção e a interpretação que fazemos dela; está dentro de nós. Isso é um fundamento do processo de comunicação, quase óbvio, mas sutil na prática, sobretudo quando o objeto de análise somos nós mesmos.
Num contexto de análise de situações, em geral temos a forte impressão de que pensamos para depois agir e, entre pensamento e ação, sentimos. A sequência pensar-sentir-agir parece clara, quase explícita. Mas é preciso considerar que o pensamento é construído com base na percepção e está é influenciada pelas emoções. Não há pensamento sem percepção e não há interpretação sem sentimento.
Mas há contextos em que nossas estruturas cerebrais tendem ao instinto e o sentimento condiciona o pensamento, mesmo que não tenhamos consciência disso, pois nossa interpretação é imediatamente condicionada por emoções “ocultas” em nosso subconsciente. Há quem não goste de praia porque no subconsciente guarda a angústia de um afogamento, mesmo sem se lembrar.
É inevitável que nossas emoções, conscientes ou não, condicionem nossos pensamentos. Para equilibrar essa influência (eliminá-la parece impossível, desumano), é preciso desenvolver nossa consciência. Quanto mais formos capazes de lidar conscientemente com a complexidade do mundo e do ser humano, mais claramente pensaremos sobre eles (e sobre nós mesmos). Isso inclui todas as manifestações de nossa inteligência, inclusive a emocional (consulte Gardner e Goleman).
A coerência entre o discurso e a ação depende do grau de consciência que nos permite integrar pensamento, sentimento e ação em uma mesma situação/contexto.
Agir guiado pelo pensamento pode ser sinal de consciência mais desenvolvida em contextos reflexivos, mas a consciência integral não busca eliminar o sentimento — busca iluminá-lo, para que razão e emoção coexistam de forma lúcida na ação (novamente, a inteligência emocional). Nós não o eliminamos, pois não temos como eliminar nossa vida pregressa, apenas o clareamos e lidamos com ele.
A sequência pensar-sentir-agir parece predominar nas mais diversas situações sobre a sentir-agir-pensar (quando o discurso tenta compreender ou justificar uma ação impulsiva), ou sobre sua forma mais branda sentir-pensar-agir (quando o discurso justifica a ação emotiva antes de a executarmos). Exemplos não faltam, pense na sua própria vida e, se você for humano, os terá em abundância.
Lembremos, entretanto, que o desenvolvimento se dá em linhas e é condicionado pelos contextos que vivemos.
Além da evolução vertical (que representa a passagem por níveis cada vez mais complexos de consciência) há também o desenvolvimento horizontal, que diz respeito à integração entre as linhas, o que nos habilita a lidar com contextos mais complexos. O amadurecimento integral ocorre quando conseguimos alinhar as diversas dimensões do nosso ser — pensar, sentir e agir — de modo que expressem um mesmo nível de consciência, mesmo em contextos diferentes.
Coerência discurso-ação (desenvolvimento de consciência) no trabalho, não significa coerência na família ou na vida social. A clareza que pensamos ter num contexto, em geral não se manifesta em outros, mesmo que a experiência em um nos dê a crença de que a temos no outro. Aliás, epistemologicamente, em qualquer contexto pensamos baseados em crenças, mais justificadas ou menos, e nem sempre em percepções próprias.
As crenças são “certezas” para as quais não temos comprovação factual (realidade), mas temos simpatia (que é emoção) por se harmonizarem com nossos conjuntos de valores, derivados dos nossos níveis de evolução nas diversas linhas de desenvolvimento da consciência. Me desculpe, mas crenças, a rigor, são ilusões muito bem construídas para se justificarem., a ponto de poderem ser confundidas com valores.
Ter crenças não é um problema, é necessário. Elas compõem nossa base de valores dando-lhes consistência. A evolução vai transformando essas crenças aqui e ali, criando maior consciência em certos contextos, permitindo elucidar a influência das emoções e nos habilitando a lidar com a complexidade. Essa consciência não as elimina (as crenças), apenas as inclui em nossa forma de pensar, nos aproximando da realidade à medida que reduz o grau de fantasia causado pela alteração das percepções e pensamentos promovidos pela intensidade dos sentimentos (inconscientes).
Os sentimentos nos fazem o que somos, os pensamentos nos guiam para o que queremos ser. Sem sentimentos não somos, sem pensamentos não evoluímos.
À medida que amadurecemos, aprendemos a reconhecer que pensar, sentir e agir são expressões simultâneas da mesma consciência. Nos estágios integrais, já não há hierarquia rígida entre eles: o pensamento não domina o sentimento, nem o sentimento o pensamento. Ambos se tornam aspectos de um mesmo processo de perceber e responder ao mundo com presença plena.
O que pensamos muda o que sentimos e o que sentimos condiciona o que pensamos. É preciso conflito entre ambos para que haja evolução. Se você não desenvolve um pensamento do qual não gosta, não evolui.
Mas não tente se tornar uma máquina colocando o pensamento sempre antes do sentimento para motivar a ação, sua(seu) amante, ou seu filho(a) agradece.
Há casos em que ser coerente é deixar o sentimento guiar o pensamento. A coerência integral não está em escolher sempre uma ordem, mas em reconhecer qual dimensão precisa se manifestar primeiro em cada situação/contexto. Ser coerente, no nível mais alto da consciência, é agir a partir de um centro integrado, onde o pensar ilumina, o sentir conecta e o agir transforma.
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