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O homem é a medida de todas as coisas. Será?

“O homem é a medida de todas as coisas” é uma famosa frase do filósofo Protágoras, da Grécia Antiga, que faleceu em 411 a.C., 12 anos antes da morte de Sócrates (399 a.C.).


Protágoras, como muitos outros pensadores pré-socráticos, era sofista. Sócrates era crítico árduo dos sofistas, a quem acusava de usar a oratória não para buscar a verdade, mas fazer valer seus particulares pontos de vistas e interesses. Vale lembrar que o discurso público era a principal ferramenta para propagar ideias naquela época.


A frase em si, mesmo isolada de qualquer contexto, parece indicar, no mínimo, um pensamento antropocentrista. Mais que isso, considerando a individualidade de cada homem, ela é uma pedra do relativismo. Aliás, apenas isso parece já dar alguma razão às críticas de Sócrates.



Hoje, cerca de 2.500 anos depois, não é difícil perceber que o pensamento de Protágoras é pertinente, talvez mais até que naquela época. Não é difícil nos depararmos atualmente com gente que discorda agressivamente dos outros apenas por não pensar da mesma forma. Isso ocorre em todas as áreas, desde a política e até mesmo na ciência, tão cultuada nos dias de hoje.


Impera em muitos casos a oposição a certas ideias apenas por não coadunarem com as ideias que temos conosco. É como admitir que está certo quem concorda conosco e está errado quem discorda. Usamos a nós mesmos como referência, partindo da premissa de que estamos certos. Admitimos que somos a medida de todas as coisas. Cada um é a sua própria referência de medida (verdade).


Sou capaz de apostar que, de tão normal que isso parece, nesse ponto alguns leitores exclamam: mas não é assim mesmo que deve ser?


Retruco: se você pensa assim, apenas confirma o exposto até aqui.


Mas aí vem a segunda parte da sentença de Protágoras, um pouco menos conhecida e menos ainda compreendida. “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”. Parece um jogo de palavras, mas não é. Vamos compreender...


Primeiramente é importante destacar que Protágoras baseava-se nas ideias de Heráclito que, por sua vez, afirmava que a realidade é um eterno fluir, ou seja, altera-se permanentemente. Assim, nada haveria de fixo para que servisse de referência. Então, o próprio homem seria a referência possível para tudo, ainda que Heráclito afirmasse que nem mesmo o homem é o mesmo em instantes diferentes. Seria uma referência mutável, mas, pelo menos, conhecida (repare a necessidade de autoconhecimento).


É curioso que no mundo atual, em que consideramos a sociedade líquida, encontremos referência à fluidez da realidade num pensador 2.500 anos anterior. E não é difícil perceber nos atuais debates acalorados sobre praticamente todos os temas uma tendência marcante para o relativismo, apesar de todas as críticas já feitas ou ainda por fazer a ele.


Uma forma comum de escrever a segunda parte da frase de Protágoras é: das coisas que são, por aquilo que são e das coisas que não são, por aquilo que não são. Ou seja, se o homem se coloca como a própria referência, a régua pela qual mensura a realidade, ele não tem como avaliar aquilo que não é em si mesmo. O certo passa a ser o que cada um julga certo e o errado segue a mesma lógica, por exemplo.


Como avaliar, então, o que não se conhece (ou não se é)? Muitos se enganam com ideias superficiais, apenas para terem um conteúdo ao qual possam se agarrar, afinal, ser a medida de todas as coisas é quase uma necessidade nessa realidade relativista. Perceba que se você não tem algum conteúdo, julgará qualquer coisa apenas pelo pouco conteúdo que tem. Isso explica, em parte, a quantidade de especialistas em tudo que encontramos por aí. Se cada um é a medida das coisas, as coisas podem ser apenas aquilo que se tem de conteúdo próprio. Logo, qualquer um se sente especialista em qualquer coisa que pretenda avaliar.


Provoco: qual é a nossa auto medida? Se eu sou a referência, eu sou uma unidade? Quantos de mim há nos outros, que também são unidades de si mesmos? Percebem a inconsistência? Se todos somos unidades, não há uma unidade de fato. E não se trata apenas de uma questão de mensuração porque há conceitos que estabelecemos com base em nós mesmos como certo e errado, belo e feio, pequeno e grande. Confuso, não é?


O problema é que, após os sofistas, vingou o pensamento fundado nas ideias de Sócrates, Platão e Aristóteles. Nessa linha de pensamento, a verdade existe para além do próprio homem e é única, até absoluta. A evolução da ciência, com seu método empírico que constata objetivamente a realidade, reafirmou à exaustão a ideia de uma verdade independente do homem. O homem não pode ser a medida de todas as coisas, isso nos levaria a constatar várias realidades, pois, como dito, não se trata apenas de mensuração, mas da própria conceituação das coisas.


A evolução do pensamento veio, através dos séculos, reforçando, por diversos aspectos ou perspectivas, a ideia de uma verdade para além do homem. Mas o senso comum não evolui na mesma medida, normalmente está um tanto atrás das ideias filosóficas mais inovadoras.


As próprias teorias para a evolução da consciência humana, apesar de admitirem níveis mais evoluídos em que a consciência rompe a barreira do ego, avaliam que o estágio atual da sociedade é um misto de níveis de evolução marcados por rígidas estruturas e modelos, mas que progridem vagarosamente para níveis com uma consciência mais sistêmica e abstrata. Estes níveis mais evoluídos da realidade referenciam visões mais integradas da existência das coisas e percebem o homem não como referência, mas como parte que integra as coisas. O homem resta reduzido a mais uma coisa entre tantas outras do mundo (uma coisa especial, mas ainda uma parte do todo).


É interessante lembrar que isso concilia com a ideia de cosmos, que também se origina na Grécia Antiga. Mas essa é outra ideia a ser refletida.


Moral da história: apesar de todo o desenvolvimento científico e de consciência, o homem, em pleno século XXI, ainda está aprisionado em seu ego e pensa segundo ideias sofistas, embora proclame retoricamente a ciência que, no seu bojo, nega ao homem o papel de medida de todas as coisas.


Conclusão: estamos perdidos em nós mesmos há pelo menos 2.500 anos.


Que pena!

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