Tirei o finalzinho do domingo passado para pesquisar uns tópicos na internet e me deparei com diversos vídeos em que pessoas falavam sobre o coletivismo. Consultei pelo menos uma dezena de vídeos diferentes, de gente, em princípio, altamente credenciada. Decepção quase geral.
Justiça seja feita, achei dois vídeos em que o termo foi abordado de forma honesta. A grande maioria o tomava com viés meramente político, na tentativa de dar ao termo um significado reduzido e até equivocado. Infelizmente, em alguns casos os vídeos eram de gente apresentada com altas credenciais acadêmicas, mas que em cujas opiniões era praticamente explícito um posicionamento enviesado.
Infelizmente, as pessoas têm caído na cilada das terminologias desgastadas pela militância política polarizada que tenta emplacar em certos termos um significado distorcido em relação ao que ele tecnicamente representa. Essa constatação vale para qualquer lado que o pêndulo oscile. E ocorre até mesmo nos meios acadêmicos, que deveriam guardar o rigorismo semântico para que os termos cumprissem sua missão de comunicar ideias precisas.
Vamos à minha explicação, que, obviamente, não pretende se firmar como palavra final, mas que está comprometida com o termo e não com um viés de interpretação dele.
O sufixo “ismo” é utilizado para designar correntes de pensamento, agregando-o a uma ideia central e geral que as caracterizem. Exemplos não faltam: capitalismo, hedonismo, subjetivismo, relativismo, sofismo, marxismo, cartesianismo etc.
Reparem que se referem a correntes de pensamento gerais e internamente consistentes que podem, aqui ou ali, serem usadas para argumentar posicionamentos e opiniões sobre assuntos diversos. Mais que isso, em momento algum o termo atribui juízo de valor (moral, científico ou qualquer outro) ao pensamento que retrata. Machismo e feminismo, por exemplo, são duas formas de pensamento às quais são atribuídos valores pelas pessoas (que os interpretam, não raramente, de forma equivocada).
A forma de pensar, em si, é apenas uma construção teórica que sustenta (tenta, pelo menos) um conjunto de ideias e formulações racionais. É o que referimos como ideologia, uma construção bem engendrada de ideias. As pessoas usam as ideologias para criar sua visão de mundo que, inclusive, costumam mesclar várias ideologias. Por isso é comum dizer que cada pessoa tem sua ideologia, na realidade cada pessoa tem uma combinação particular delas para criar sua forma de se relacionar com a realidade nos diversos temas a ela pertinentes. O valor não é intrínseco às ideologias, mas atribuído por quem as julga ou usa.
Vejamos, então, os termos que nos interessam.
Coletivismo e individualismo são dois pontos de vista diferentes sobre as mesmas coisas: política, sociedade, economia etc. São bastante genéricos e compõem argumentos para diversas formas de pensamento sobre os problemas humanos. Como estruturas de pensamento fundamentais, são objeto de estudo da Filosofia e, a partir dela, da política, da economia, da sociologia e por aí vai. Claro, sustentam ideologias, ou seja, forma de pensar o mundo.
O individualismo, como se pode perceber, toma o indivíduo como ideia fundamental e constrói um sistema de reflexão que recai inevitavelmente na questão da liberdade individual. Daí derivam posicionamentos morais, políticos, econômicos etc.
O coletivismo por sua vez, coloca como ideia fundamental a interdependência dos seres humanos e está focado no compromisso de cada um com a humanidade, entendida como fundamento. É claro que também derivam daí posicionamentos morais, políticos e econômicos, diferentes do individualismo.
O primeiro alerta necessário é que o coletivismo, como estrutura ou corrente de pensamento, não se refere aos grupos parciais, mas ao conceito que agrega todos os indivíduos num único grupo. Logo, confundir coletivismo, enquanto sistema de pensamento, admitindo grupos parciais como conceito de coletivo, é um equívoco (poderíamos dizer que grosseiro para estudiosos dos temas). Apenas para esclarecimento, embora os grupos sejam semântica e coloquialmente designados por coletivos, no coletivismo o coletivo precisa ser total. Grupos parciais poderiam ser entendidos como classes diferentes. Assim como o coletivo dos números naturais, apresenta números pares e ímpares, por exemplo, sem que um grupo isoladamente represente o coletivo dos números. Veja que seria possível ainda definir a classe dos números primos e outras, conforme a vontade ou interesse.
Pensar a sociedade com um pensamento coletivista é pensá-la como um todo e não a pensar como um conjunto de grupos diferentes. O coletivo dos empregados, o coletivo dos empresários, o coletivo de mulheres, o coletivo de negros etc., nesta formulação de ideias, são classes.
Vale destacar que pensar a realidade humana como composta por classes é possível e gera outra formulação teórica, ou outra ideologia.
Tentemos a seguinte forma de pensar: no coletivismo todos os problemas a serem discutidos são internos ao coletivo (ideia fundamental do modelo de pensamento). Complementarmente, no individualismo, todos os problemas a serem discutidos são externos ao indivíduo (ideia fundamental do modelo de pensamento).
Está claro que são modelos teóricos, pois tudo é em geral interno ao coletivo e externo ao indivíduo. Logo, quase tudo na realidade pode ser abordado tanto pelo viés do indivíduo e sua liberdade, quanto pelo cies do coletivo e seu equilíbrio. Tomar um viés como plataforma de apoio para se posicionar sobre os diversos aspectos da vida humana não exclui o outro viés. No limite, a conclusão é sempre pela necessidade de encontrar conciliação entre ambas as ideologias. A dificuldade não é pela diferenciação, mas pela integração.
Como correntes de pensamentos com fundamentos tão diferentes, impactam todos os aspectos da vida, pois sustentam com argumentos diferentes (junto com outras concepções) a própria visão de mundo das pessoas. Assumir qualquer uma das duas estruturas de pensamento por um viés apenas é uma simplificação que torna o pensamento incapaz de enfrentar um tema tão complexo como a vida em sociedade (aspectos sociais, políticos, econômicos etc.).
A primeira conclusão é que se você tem um pensamento predominantemente individualista ou coletivista, em qualquer caso você está limitando seu pensamento sobre a realidade. Afinal, somos indivíduos e coletivo simultaneamente. Pensar em qualquer um deles é pensar sobre a realidade. Pensar em ambos nos permite ampliar nossa consciência para compreendê-la e evoluir enquanto humanidade.
E por falar em evolução, as teorias mais atuais sobre o desenvolvimento humano identificaram níveis de evolução da consciência nos processos de desenvolvimento individuais e coletivos. Algo interessante nelas é que os estágios de evolução são os mesmos para indivíduos e sociedades. Isso é mais um indicativo que individualismo e coletivismo são duas faces da mesma moeda e não é possível pensar um, sem considerar o outro.

Diferenciação e integração são traços que se alternam na caracterização dos níveis de desenvolvimento das sociedades (cultura) e dos indivíduos (consciência). Os níveis superiores incluem os inferiores e os aspectos da vida da sociedade, ou do indivíduo, não evoluem necessariamente no mesmo passo. Assim, é possível que uma sociedade esteja economicamente num estágio de evolução, mas politicamente noutro. Similarmente, a consciência de um indivíduo pode estar racionalmente num nível e emocionalmente noutro.

Considerando que são sete níveis evolutivos na principal teoria do desenvolvimento da consciência atualmente, seria razoável pensar que uma discrepância muito grande entre os níveis de evolução dos aspectos de nossa consciência pode indicar desequilíbrios interpretados como patológicos, por dificultar (ou até impedir) uma convivência harmoniosa em comunidade. Repare que é possível expandir esse raciocínio para sociedades que tenham dificuldade de se entenderem em questões fundamentais. Aprofundar neste tema poderia ensaiar explicações para várias questões que vivemos atualmente.
A diferenciação é uma manifestação do individualismo (que se manifesta também nas classes que possuem indivíduos com traços comuns) e a integração, do coletivismo. E ambos são processos naturais no desenvolvimento, sendo possível através de levantamentos técnicos, identificar os níveis de evolução que caracterizam um indivíduo ou uma sociedade. Esta alternância de tônica na caracterização dos níveis evolutivos ajuda a entender também a dificuldade de conciliar visões de mundo em níveis diferentes, sobretudo quando são níveis marcados pelo individualismo ou pelo coletivismo. Mas, é exatamente esse antagonismo de opiniões que movimenta o processo evolutivo, eliminá-lo elimina a evolução.
A sociedade tem como componente fundamental um grupo de indivíduos (os seres humanos) e o indivíduo tem como referência da individualidade a percepção dos outros, ou seja, também o grupo. A conexão entre individualismo e coletivismo é quase inquestionável. Logo, pensar estas duas vertentes de pensamentos como opostas é um erro grosseiro, mas comumente cometido, até por pessoas academicamente bem credenciadas. Mesmo como artifício didático, a ideia de oposição entre ambos reforça a polarização nos diversos aspectos da vida que, mesmo subliminarmente, distorce um fundamento no entendimento da realidade. Por fim, forma indivíduos menos capazes de criar suas próprias visões de mundo, porque veem a luz em apenas um lado da moeda.
Na prática, para defender um interesse particular, indivíduos se associam a pares que compartilham esse interesse, formando grupos que são designados comumente como coletivos (adequadamente deveríamos chamá-los de classes). Assim, temos o coletivo de empregados, o de empresários, o de negros, o de homossexuais etc. Perceba que as pressões socioeconômicas baseadas nos interesses dessas classes, são, na realidade, manifestações do individualismo, pois estes grupos lutam por interesses individuais comuns entre seus membros. Valeria a pena discernir aqui entre interesses compartilhados e comuns, mas vamos nos limitar a afirmar que são ideias sutilmente diferentes para não incluir mais uma distinção semântica nessa análise.
O coletivismo, por sua vez, é exercido quando lidamos com interesses que são de todos os seres humanos e de uma sociedade, ainda que alguns possam não os perceber. O exemplo clássico é o interesse no equilíbrio ambiental do planeta. Outro exemplo seria o interesse pela verdade, o que requer o combate à propaganda enganosa. Em jargão jurídico, poderíamos dizer que o coletivismo sustenta a pauta dos direitos difusos. E é importante destacar que direito difuso não é o mesmo que direto coletivo (que tem a ver com grupos menores que possuem algum traço característico em comum). Todo interesse difuso é um interesse compartilhado por todos os indivíduos, indistintamente que, inclusive, só faz sentido por estes indivíduos serem entendidos sob uma única caracterização (a de cidadãos, por exemplo, pois todos são) que os abrange a todos.
Como vemos, individualismo e coletivismo são indissociáveis. Não são opostos, mas complementares. O indivíduo existe a partir do coletivo. O coletivo só existe porque há indivíduos. Os interesses de um indivíduo são restringidos pelos interesses coletivos. Há interesses que são gerais, compartilhados por todos os indivíduos. O resultado da ação do indivíduo pode ser colhido para si, mas a ação é dirigida ou recebida pelo coletivo ou por uma classe de indivíduos.
Uma ideologia isolada lança luz sobre um lado da esfera enquanto cria sombra sobre o outro. Sua visão será sempre parcial, incompleta. A introdução desta metáfora da sobra é proposital. A sombra é também uma metáfora utilizada no contexto da psicologia para designar, grosso modo, traços da personalidade inconscientes para o indivíduo, mas que inevitavelmente, moldam seu comportamento e sua forma de pensar. São inconscientes por terem sido recalcados ao inconsciente, como que banidos da autopercepção consciente.
Estranhamos no outro, eventualmente com alguma dose de ira e violência, a sombra que inconscientemente reconhecemos em nós. A simpatia a certa ideologia pode ser, inclusive, um artifício psicológico para negação da sombra. Um mecanismo de defesa que nos impede de encarar traços próprios que não aprovamos, mas que temos. Encarar a sombra é doloroso, mas psicologicamente libertador e socialmente integrador. Isto talvez explique a dificuldade de conciliação entre individualistas e coletivistas. Enquanto um está na luz da ideologia, outro está na sombra.
Entre os limites, estão nossas visões de mundo que serão tão mais adequadas quanto mais difusa for a luz lançada sobre a realidade. E, para lançar luz sobre a realidade externa, precisamos que a luz seja lançada sobre nossa própria sombra. Afinal, como pretender entender o mundo e os outros se somos extremamente limitados no nosso auto entendimento?
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