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Engenharia Integral – Parte 2: fundamento Integralidade

Entendida a Engenharia, conforme exposto na parte 1 do texto, como a área de especialização em conhecimentos que criam, instrumentalizam ou estabelecem concretamente relações dos homens, individual e coletivamente, com a realidade que os cercam, incluindo nossa própria espécie como componentes da natureza; resta-nos explorar o segundo tema fundamental para uma melhor compreensão da Engenharia Integral: a Teoria Integral.


Vou plagiar a mim mesmo replicando um trecho de um artigo escrito recentemente sobe ESG (Enviroment and Social Governance) que você pode apreciar no meu blog.


Ken Wilber, filósofo americano que nos trouxe a perspectiva da Teoria Integral, apresenta-a de forma prática a partir de um framework dividido em quatro quadrantes. Vamos reconstituí-lo rapidamente:


  1. Imagine que pudéssemos distribuir (representativamente, é claro) todo o conhecimento produzido pela humanidade num quadro plano. Digamos uma folha de papel. Ali estaria todo o conhecimento científico, filosófico, espiritual etc.

  2. Dividamos este quadro por uma linha vertical e coloquemos inicialmente à esquerda tudo que é interno ao indivíduo e à direita, tudo que lhe é externo. É claro que a consciência de uma pessoa estaria do lado esquerdo (interno) e, por exemplo, o conhecimento da física e/ou química do mundo à direita (externo).

  3. Façamos uma nova divisão, agora por uma linha horizontal. Coloquemos na parte de cima, tudo que é individual e, abaixo, tudo que é coletivo. No quadrante interno/coletivo (esquerda/abaixo) temos, por exemplo a cultura, como se esta fosse a consciência coletiva de uma comunidade. A direita/abaixo (externo/coletivo) estão as estruturas sociopolíticas ou econômicas, por exemplo.

 


 Ao lado direito está, entre outras coisas, tudo que é físico no mundo, pois são, evidentemente, externos a nossa consciência ou cultura. É neste lado que ocorrem as ações de indivíduos e coletivos. Mas estas ações não são desvinculadas do lado esquerdo, pois as intenções e impulsos que as originam ocorrem internamente, em nossa consciência ou a partir da cultura.


Em que região estão os trabalhos da Engenharia? Obviamente do lado direito, pois são ações sobre o mundo. Se ajudar a visualização, podemos considerar numa região próxima à linha vertical divisória. As coisas da Engenharia existem na realidade concreta e são utilizadas para alterar o mundo. Como qualquer outra ação humana, são frutos de uma intencionalidade que existe do lado esquerdo deste framework.


Agora repare que estas ações transformam o mundo externo e, em alguns casos, afetam nossa percepção das coisas (conforme exemplificado na parte 1 do texto). Estas novas percepções interferem na consciência que temos do mundo e, em conjunto, condicionam nossas interpretações e decisões internas, conscientes ou inconscientes, racionais ou não. Estas decisões promovem novas ações e o clico de relações com o mundo gira.


Coletivamente o fenômeno é similar. Um grupo de pessoas que compartilham algum entendimento comum sobre algo (o que é cultural, por se coletivo), age sobre o mundo transformando-o. Outros grupos, com compreensões diferentes também agem transformando o mundo. Por fim, as coisas se alteram pelas ações dos grupos que passam a percebê-las de forma diferente, o que promove novas ações. Neste caso, a própria composição de um grupo pode ser alterada, pois um membro pode migrar para outros grupos se sua interpretação restar mais alinhada com o outro.


Estes ciclos, no que se refere ao tempo, podem ser curtos ou longos. Isso quer dizer que as transformações podem ser praticamente imediatas ou podem se consolidar ao longo de semanas, meses, anos, décadas etc.


Um empreendimento de Engenharia (a rigor, as pessoas que o executam) precisa ter consciência deste seu papel de mediação nos relacionamentos dos indivíduos e coletivos com o mundo. Ao assumir esta postura, uma consciência mais abrangente surgirá, alterando a percepção que os próprios responsáveis têm do mundo ou da realidade que afetarão. Isso retroalimenta a concepção do empreendimento e estes ciclos de compreensão produzem resultados mais alinhados com a intencionalidade (que se presume comprometida o progresso sustentável, numa perspectiva integral).


Em geral, os ciclos de ações coletivas são longos e os empreendimentos de engenharia são decisões coletivas: um grupo de profissionais, reunido por interesses e intenções convergentes, decide por realizá-lo. Um empreendimento de engenharia produz reflexos por décadas ou séculos e seus efeitos transformacionais são mais intensos em alguns poucos anos após sua implantação, mas perduram. É preciso pensar a curto, médio e longo prazo nos empreendimentos de Engenharia.


Nesse extenso prazo de influência do empreendimento, é natural que sofra os reflexos das alterações que ele próprio influenciou nas relações do homem com a natureza (o que inclui o próprio homem, individual ou coletivamente). Isso quer dizer que a percepção e interpretação que fazemos de um empreendimento pode mudar; o que era bom torna-se ruim, ou vice-versa.


Um empreendimento implantado para resolver um relacionamento difícil do homem com o meio pode, numa circunstância que se forma anos depois, representar o pivô ou ponto nevrálgico de conflitos nessa relação. Por exemplo, um pequeno estádio de futebol que promove integração e entretenimento, ao cair em desuso, se torna um “elefante branco” em região nobre da cidade.


Essa dinâmica é um tanto imprevisível e outro tanto modelável. Mas, para modelar as possibilidades de desdobramento, é fundamental que sejam considerados todos os quadrantes da Teoria Integral, pois é preciso analisar dois ciclos, um de motivação/ação (relações individuais) e outro de legitimação/alinhamento de ações (relações coletivas), como representado na figura a seguir (com base em artigo sobre o pensamento social weberiano constante no livro 3 da Coleção: Gestão, Tecnologia e Gente, lançada em 2020 e disponível no site). Estas ações reestabelecem o complexo social que sustenta o domínio cultural que, por sua vez, reconfigura as motivações/intenções para ações que façam sentido para a consciência individual e a cultura.

 

 

A Engenharia Integral consiste, portanto, na consideração da Engenharia como mediadora das relações humanas com a natureza física e social da nossa realidade, na medida do possível e do viável considerando os desdobramentos que esta mediação influenciará e a reconfiguração que promoverá na forma que indivíduos e seus coletivos percebem e interpretam suas relações. Uma boa Engenharia Integral promoverá um domínio cultural que contribua para que as motivações dos indivíduos tendam a ações que transformem o mundo no sentido de um melhor equilíbrio do sistema físico-social-econômico.


Essas contribuições da Engenharia, contudo, são, em geral, indiretas, uma vez que influenciam primariamente as formas de percebermos o mundo, interpretá-lo e nos relacionarmos com ele. Por exemplo, o uso de tecnologias (criadas pela Engenharia) nos deu uma capacidade maior de mudar (inovações) e, com ela, uma dificuldade maior de adotar referências sólidas, afetando nossa construção identitária (um dos reflexos do mundo líquido, de Bauman).


 Assim, coerentemente com a natureza das questões relativas à evolução, a Engenharia Integral impõe a convivência dos profissionais da Engenharia (e Arquitetura) com modelos baseados em incertezas, percepções múltiplas e interpretações voláteis. Profissionais adestrados para a convicção, a segurança, a exatidão e a solidez, se encontram, com a Engenharia Integral, na fronteira entre a natureza estável das coisas físicas e a natureza permanentemente transformacional das sociedades. Essa é uma fronteira que poucos enfrentam e que exige colaboração nos quadrantes. A integralidade envolve o espaço e o tempo.


Afinal, é da diversidade de consciências e culturas que se cria e transforma a realidade que nos cerca e espera-se que a Engenharia, conforme a definição que demos, seja o reduto mais apropriado para interferir nesse ciclo de mudanças. Criar os meios de relação do homem com o mundo é uma função reducionista para a Engenharia, pois seus reflexos, possibilidades e responsabilidades vão além disso, à esquerda e à direita. É essa perspectiva mais completa e abrangente que  torna a Engenharia integral.

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