Quem me acompanha sabe a importância que dou para o tema comunicação. Inclusive, fui autor do capítulo sobre comunicação no livro “Liderança com base nas soft skills” da Editora Leader.
E sempre que falo de comunicação, faço questão de frisar a importância do referente. Recentemente presenciei um problema simples em relação a isso, que vou contar logo à frente. Mas, antes, preciso recordar, ainda que rapidamente, o conceito de referente no processo de comunicação.
A figura representa o processo de comunicação e mostra claramente que ele ocorre num ambiente que podemos chamar de referente (é uma ideia grosseira do referente, mas não é incorreta). Esse ambiente não é apenas físico como uma sala de reuniões, ou um escritório, ou mesmo a casa onde você mora. Há muitos aspectos que caracterizam o referente e estes aspectos não são fixos, variam constantemente. Por isso é tão importante observar o referente no momento da comunicação: uma mesma mensagem é interpretada de formas diferentes se o referente muda.
O próprio clima faz parte do referente. Veja: num dia frio se você exclama “que frio!” todos entendem que você está com frio; já num dia extremamente quente, se você exclama “que frio!”, todos entenderão que você está brincando ou doente. Eis um exemplo bastante simples da influência do referente na interpretação que as pessoas fazem das mensagens.
Mas há aspectos do referente que, por serem mais sutis, são mais difíceis de gerenciar. Não se espante com o termo “gerenciar”, pois é isso mesmo, você deve gerenciar o referente para obter melhor resultado do processo de comunicação. Apenas construir as mensagens não é suficiente.
Aspectos como a condição emocional do interlocutor, seus grau de atenção e interesse pelo tema que está sendo tratado, seu histórico que molda suas atitudes em relação ao assunto, os valores cultivados pelo interlocutor que moldarão marcantemente sua forma de responder às ideias comunicadas, etc. Tudo isso é referente e, se não gerenciamos, pode conduzir nossa comunicação para um resultado divergente do pretendido.
Aqui caímos num outro aspecto importantíssimo da comunicação: o objetivo da comunicação não é meramente informar, mas influenciar o comportamento do interlocutor. Ter consciência disso é fundamentalmente crítico para a comunicação. Quando transmitimos alguma mensagem, temos, obviamente, a intenção de que seu conteúdo induza o interlocutor a algum comportamento, atitude ou entendimento específicos. E há uma arte nesse processo.
Você já deve ter ouvido algum bom humorista contando uma piada e outra pessoa, com menos aptidão, contando a mesma piada. Reparou que há uma diferença enorme? Todo humorista constrói um referente apropriado para inserir seu repertório de piadas. Sem esse referente, a graça não é a mesma. É o que podemos chamar de “esquentar o público”, ou seja, introduzi-lo em um referente apropriado, no qual certas palavras passam a carregar aspectos específicos. Uma expressão étnica específica em contextos diferentes pode facilmente pular da graça para a ofensa.
Agora vamos ao evento que presenciei recentemente.
Duas pessoas que compartilham o ambiente de trabalho interagem constantemente num clima de absoluta harmonia e sempre bem humorado. Apelidos, trolagens, expressões caricatas, etc. são abundantemente usados e tudo permanece sempre no contexto bem-humorado. Até mesmo situações que noutras condições seriam classificadas como bullying, preconceitos, etc. são utilizadas provocando grandes gargalhadas e um clima extremamente amistosos, no qual isto tudo é interpretado apenas como recursos de humor.
Mas, eventualmente, por se tratar de ambiente de trabalho, assuntos sérios são abordados. Quase sempre são resolvidos no mesmo clima de boa convivência e humor, afinal, não é porque é sério que precisa ser sisudo. As pessoas sabem separar bem isso, pois se dão sempre muito bem e querem se ajudar.
Numa ocasião, entretanto, em função de algum evento pontual, uma das pessoas (chamaremos de emissor) tenta fazer uma crítica ao comportamento da outra no trabalho, mas o faz sempre no mesmo clima amistoso e brincalhão. A resposta vem, claro, no mesmo clima brincalhão. Como foi uma “trolada” específica a um comportamento pessoal do receptor (assim foi interpretado em função do referente), a resposta vem na forma de “trolada” caricaturizando algum outro comportamento do emissor. Mas repare que há mais coisas no referente. Emissor tinha algo de seriedade no seu referente, mas receptor, pego de surpresa, não tinha.
Nos comportamos com base nos nossos valores, princípios, vivência, características pessoais, etc. Ou seja, uma crítica a um comportamento, é uma crítica indireta a essas coisas. E isso tudo é sempre muito caro às pessoas. A troca de “trolagens” entre emissor e receptor deixa dúvidas quando ao referente. Foi uma trolagem ou foi uma crítica séria que merece ser abordada de forma mais transparente e clara?
O que foi travestido de trolagem é, na realidade, uma crítica séria e, agora, emissor e receptor, que sempre se deram super bem, estão no limite de se sentirem ofendidos, pois tiveram seus valores e princípios tocados através de uma crítica a um comportamento pessoal. O referente se alterou drasticamente no meio da conversa, elementos de ordem moral e psicológica entraram fortemente na cena. Qualquer palavra, a partir daí, tem interpretações mais profundas na mente de cada pessoa e não carregaram apenas o significado engraçado que comumente têm nas interações de ambos.
E assim, a próxima mensagem trocada, que veio até por inércia, no mesmo clima de brincadeira, ofende e a brincadeira acaba. Por estarem em ambiente de trabalho o assunto não é estendido e tudo fica no ar, confuso pela falta de um referente apropriado para ajustar corretamente as interpretações a serem feitas.
O problema não termina aí, pelo contrário, ele começa aí. A partir de então, emissor e receptor se veem num referente confuso, pouco claro, sem objetividade, etc. Este é um referente adequado às interações humoradas, mas muito ruim para assuntos sérios e delicados (no sentido de esbarrarem em questões mais fundamentais da psiquê das pessoas).
A tendência, por inabilidade das partes, é que não se resolva. O referente bem humorado construído inicialmente possuía alguns significados próprios e eventualmente equivocados como: não temos assuntos sérios a tratar e, portanto, não precisamos nos preparar para eles; se compartilhamos o mesmo espaço e a mesma convivência, temos valores que se harmonizam; esse ambiente que criamos nos protege de desentendimento e ofensas; nossa relação bem humorada nos facilitará lidar com assuntos delicados quando for preciso.
No fundo, o referente foi a grande causa do problema pelo fato de que não foi gerenciado pelas partes nas suas interações. A permanência por longos períodos num certo contexto suprimiu, mesmo que episodicamente, a habilidade de lidar com questões que exigem referentes diferentes.
Como recuperar a harmonia? A questão agora é mais complexa, pois o referente envolve inevitavelmente aspectos da psique de cada pessoa e, como sabemos, essa é uma área nebulosa para as próprias pessoas. A grande dúvida é saber até onde o referente inicial pode salvar uma relação que parecia ser tão harmoniosa. E o pior, a amizade que imperava no ambiente precisará se mostrar mais forte que as diferenças, normais entre as pessoas. A amizade não exige harmonia plena, pelo contrário, ela se fundamenta naquilo que cada indivíduo tem para agregar e contribuir com o outro. Se admitirmos que não há contribuição possível (e essa situação ocorre na divergência plena ou na congruência plena), não há possibilidade de recuperação.
A questão é: somos mesmo assim tão suficientes, tão diferentes ou tão iguais?
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