A compreensão do mundo sempre foi o grande desafio do ser humano. Aliás, do universo todo. E, em busca deste conhecimento, o homem criou abordagens diversas. Nessa linha sucederam na história pensadores brilhantes que construíram sofisticados sistemas de compreensão do mundo. Todos eles se apoiavam em ideias fundamentais que balizavam sua visão do mundo e, pedra por pedra, erigiram seus sistemas de pensamento.
A comunicação era difícil. Poucos foram os pesadores que tiveram seus pensamentos documentados para a posteridade. Mas, apesar de poucos, as bases antigas do pensamento humano passaram pelas gerações e chegaram aos dias de hoje. A tecnologia evoluiu e a imprensa multiplicou as possibilidades de registro do pensamento humano e de sua disseminação. O número de pensadores aumentou proporcionalmente às possibilidades de registro e comunicação de ideias. A internet surgiu e a barreira de disseminação dos pensamentos ruiu. As redes sociais emergiram e as tais barreiras praticamente nem existem mais. A compilação do conhecimento humano na inteligência artificial parece nem considerar que um dia houve barreiras.
É interessante reparar que o conhecimento é cumulativo, pois as ideias primordiais produzidas na filosofia grega clássica, são ainda o fundamento de muitos (se não todos) dos sistemas de pensamento. Mas alguns períodos e pontos de inflexão são notáveis. Alguns pela produção, outros pela falta de produção filosófica de qualidade. Exemplo clássico é a chamada Idade das Trevas, que durou cerca de dez séculos (século IV ao século XV). Não que não tenha ocorrido avanços nesse período, seria ingênuo achar que em mais de dez séculos nada se tenha produzido. Mas os avanços vieram sobretudo nas artes e na tecnologia. E, obviamente, as transformações sociais nunca deixaram de existir. Mas, pense quantos pensadores deste período são inovadores por seus feitos filosóficos? Compare com a quantidade de gregos que você possa se lembrar. Houve, claro, mas não em quantidades com qualidade memorável.
A modernidade marcou talvez um dos principais pontos de inflexão na história da filosofia. Descartes e seu método, o Iluminismo com tantos nomes importantes, o pensamento político-econômico. Após o século XVI o homem parece ter novamente despertado para a compreensão do mundo e deu à história rumos inesperados.
Foram 10 séculos de produção filosófica fundamental, do século V a.C. ao século IV d.C. Depois, mais 10 séculos de Idade das Trevas (Idade Média). Experimentamos, na sequência, uns pouco séculos de modernidade e entramos na chamada Idade Contemporânea, a partir de 1800.
A contemporaneidade é marcada pela indústria, ou seja, novamente a produção tecnológica toma o lugar de destaque. Mais um ciclo de evolução tecnológica. Aliás, a ideia de que as coisas evoluem em ciclos parece se consolidar neste período. Em 1900 a postura científica invade a filosofia, que se vê ameaçada por uma quase negação da metafísica (afinal, não é experimental, ou seja, não é científica).
A pergunta imediata é: será que, como na Idade Média, esse protagonismo das mudanças tecnológicas sobrepujou, mais uma vez, o desenvolvimento filosófico? Aqui começa nossa crítica. Até aqui preparamos o cenário apenas.
Nietzsche, para ficar com um respeitado filósofo contemporâneo, já dizia que o homem não produz conhecimento da verdade de fato, uma vez que o faz por intermédio de duas metáforas, a dos sentidos e a da linguagem. Para além destas limitações, intrínsecas ao homem, há uma verdade no mundo (extramoral). Estou sendo cortês, Nietzsche apontava a vaidade e a arrogância humana como vetores de produção de um conhecimento que apenas sustenta uma posição egocêntrica em relação à natureza. Não é de se estranhar que com tanta clareza, o home tenha terminado louco.
Teorias da evolução da consciência classificadas como científicas, satisfazendo a intelectualidade contemporânea, corroboram Nietzche, estabelecendo níveis de desenvolvimento que em algum momento extrapolarão a barreira do ego. Trata-se de uma questão psicológica (portanto, científica) com um impacto imensurável no pensamento filosófico (embora na Grécia Antiga, o ego já fosse menos cultuado).
Nos meios leigos, aqueles que não têm por ofício buscar a verdade extramoral de Nietzsche, se contentam com uma espécie de filosofia descritiva, que tenta entender o mundo com base no próprio homem (erro filosófico padrão). Neste meio a produção tem sido alta. Afinal, as redes sociais deram voz a uma miríade de pensadores denominados influencers. Sócrates e companhia limitada são influencers tão fortes que permanecem ditando ideias desde a 2500 anos. Os novos, quando muito, ficam uns poucos anos no holofote, até que outro traga uma visão mais lacradora. Mas fique comigo até o final que reservei uma surpresa especial para você (não resisti à paródia). Sócrates e companhia não tinham perfil nas redes sociais. Por sorte, alguns influencers ainda os citam; outro, os usam, o que é bem diferente.
Nestas visões de mundo produzidas para tentar explicar aos seguidores das redes sociais as coisas que nos acontecem, sacamos o mundo VUCA: volátil, incerto, complexo e ambíguo. (A construção da abordagem é séria, mas caiu no uso dos influencers).
"Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou" (Heráclito, 540 a.C. a 470 a.C.). Isso é a volatilidade do mundo. Mas, de fato, a volatilidade é uma característica atribuível ao mundo, o que salva o V do VUCA.
Incerto tem a ver com a dificuldade de prever tendências, por desconhecimento de modelos representativos de alguma porção da realidade. Isso é altamente filosófico e retrata, de fato, a condição do homem nesse universo. “Só sei que nada sei”, frase atribuída a ninguém menos que Sócrates. Embora seja uma dúvida posta para o homem, ela se refere à sua relação com o mundo.
Complexo, por incrível que pareça, refere-se exatamente àquilo que tem estrutura: com-plexo, em oposição à ideia de sem-plexo. A origem etimológica traz a ideia de tecer, entrelaçar. Antes de assumir a dificuldade, a expressão complexo assume que há uma estrutura. É uma espécie de “subir a régua” da ideia de cosmo, da filosofia grega. O cosmo é certinho e perfeito, o complexo é uma rede entrelaçada, tecida aos poucos, não nasce pronta. É uma ideia, sem dúvida, associada à realidade do mundo.
Ambíguo, na exposição sobre o mundo VUCA, diz das várias alternativas possíveis, sem que haja certeza da correta. Diferente do incerto, que diz respeito a não saber, o ambíguo diz respeito a ter mais de uma resposta e precisar decidir entre elas. Embora o livre arbítrio para a tomada de decisões seja um tema forte e importante na filosofia, no contexto do mundo VUCA ele parece estar mais associado à ideia da dificuldade de decidir do que à da liberdade decisória. Nesta condição, dificuldade de decidir, que traz o medo de tomar decisões, começa a esbarrar num problema psicológico do indivíduo e não da condição humana no mundo. Não se trata de uma visão sobre o mundo, mas sobre o indivíduo. Se fosse uma questão filosófica a ambiguidade talvez fosse tratada numa perspectiva ética.
Mas no frigir dos ovos, a abordagem do mundo VUCA propõe uma reflexão sobre a realidade do mundo e nossa relação com ele enquanto humanidade. A questão do indivíduo fica secundária em função do generalismo dos conceitos e análises propostas.
Mas trouxeram também o mundo BANI: frágil, ansioso, não linear e incompreensível. E aí a coisa verte de vez para o lado da psicologia, deixando de ser uma visão filosófica. Não se trata de uma visão sobre o mundo e nossa relação com ele, mas sobre o drama do indivíduo no mundo, o que é muito diferente.
Frágil é qualidade de algo que se quebra facilmente. No mundo BANI o termo é usado para se referir à possibilidade de tudo poder mudar drasticamente a qualquer momento, ou seja, uma linha de acontecimentos pode se quebrar e assumir outra direção inesperadamente. Diz-se, neste contexto, da incerteza que temos sobre o futuro. Repare que, diferentemente do incerto do mundo VUCA, frágil carrega no próprio significado a entrega do homem à sua impotência, quase que tirando-lhe dos ombros a responsabilidade pelas coisas que faz. Achamos uma forma de nos colocarmos como vítimas do mundo. O que Nietzsche escreveria sobre isso? Construímos conhecimento para sustentar nossas posições egocêntricas e, agora, criamos uma forma de mudar nossas posições a qualquer hora justificando que a culpa é do mundo frágil.
Ansioso é pior. Soa quase como um pedido de socorro frente à incapacidade de tomar decisões. É ansioso quem não sabe o que fazer, caso contrário seria resoluto. Vamos e convenhamos, ansiedade não é uma visão sobre o mundo. O mundo não é ansioso, nem nossa relação com ele. Estamos aqui falando abertamente de uma questão psicológica, elevando-a a um status filosófico (visão de mundo). Essa ansiedade é de causas ânsias (adoro trocadilhos).
A não linearidade, mais uma vez, mostra a dificuldade do homem em construir uma percepção do mundo de mais longo prazo. É o cidadão comum dizendo com todas as letras: preciso de iluminação (no melhor sentido do Iluminismo). A compreensão do mundo a mais longo prazo, ou seja, as tendências, sempre foi uma questão probabilística (que inclui a incerteza naturalmente). Nem por isso pensadores deixaram de construir suas visões e até hoje o fazem. Eventos que viraram o curso da história sempre ocorreram e continuam a ocorrer, em prazos menores conforme o universo de análise. A percepção da não linearidade como um problema a ser enfrentado não decorre de um surgimento repentino dela, mas de do fato de termos que enfrentar tal questão num prazo menor que uma vida humana. Quem sempre se deu ao trabalho de pensar o mundo em escala histórica e humana (não individual) não se assusta com essa previsível não linearidade. De mais a mais, isso está incluído no conceito de incerteza do mundo VUCA, mas a incerteza é nossa e descarregar a culpa na não linearidade do mundo é mais confortável.
Incompreensível é outro termo que não precisa de muita explicação. O mundo é o mundo, somos nós que temos ou não capacidade de compreendê-lo. Portanto incompreensível não diz respeito ao mundo, mas aos indivíduos. Fala-se de lidar com o excesso de informações que dificulta nosso entendimento e da necessidade de decidir nesse ambiente. Não dá para negar o excesso de informação que cai sobre nossas cabeças atualmente. Mas não dá para negar que a maioria delas não nos afeta diretamente e outra boa parte nos afeta muito indiretamente. O que importa não é tanto, mas é preciso conhece o básico para saber separar. É esse básico que está faltando, então tudo é incompreensível.
Na onda dos acrônimos, proponho um interessante. Afirmo que estamos vivendo num mundo CAOS: confuso, anárquico, obscuro e suscetível. É claro que eu faço isso como crítica a esse modismo, mas a argumentação é séria.
Confuso porque de fato há uma mistura muito grande de coisas. Mas repare que boa parte dessa mistura acontece porque não sabemos mais separar as coisas. É um problema da natureza do excesso de informações, mas que não bate na tecla da quantidade delas, mas na dificuldade, que é nossa, de classificá-las, discriminá-las e usar o conjunto que interessa a cada caso. O mundo sempre foi uma mistura, mas ela se intensificou com os avanços tecnológicos e seus canais de conexão. Nós não evoluímos na capacidade de encontrar o que importa nesse meio. Confuso é, então, uma característica que o mundo sempre teve, e atualmente é um estado que cultivamos em nós mesmos (o termo cultivamos é proposital, porque é solúvel para quem quer resolver).
Anárquico diz respeito à negação das hierarquias. A hierarquia é um recurso que a natureza sempre usou para se organizar. O anseio pela liberdade, entregue nas mãos de quem não sabe usá-la, tira não apenas as maléficas estruturas de coerção pré-existentes, mas também as benéficas de organização. Isso, associado à dificuldade de compreender o mundo, que já foi assumida tanto no VUCA, quanto no BANI, nos leva a um estado anárquico. O princípio da hierarquia, como princípio da própria natureza, nos permitiria estratificar informações, influencers, teses, hipóteses etc. com mais habilidade. Um princípio simples que resolveria muita coisa. Mas optamos pela anarquia, a negação de qualquer tipo de hierarquia. Qualquer coisa, qualquer indivíduo, qualquer organização podem ser colocados em qualquer lugar com base na opinião de qualquer coisa, qualquer indivíduo, qualquer organização. É um círculo vicioso. Na realidade, uma espiral descendente. Se a meta do nivelamento é a média, a próxima média será sempre inferior.
Obscuro está aqui bem no sentido da Idade das Trevas. Temos uma sociedade que anda conforme mandam os senhores feudais. O feudo de cada rede social, de cada tema (teoria) que prometa salvação, de cada tópico do momento e de cada posicionamento de manada. O que seu senhor feudal lhe oferece hoje? Que ideia ele trará para você consumir e se enquadrar? Que outro rei você seguirá quando o atual não mais lhe alimentar? Esta é a obscuridade: não saber decidir sobre a própria vida sem que alguém, qualquer um sem critério de seleção, lhe indique um caminho. O indivíduo não constrói seu mundo hoje, ele vive copiando um mundo que alguém construiu pra ele e acredita piamente neste mundo (a palavra piamente é proposital). E, se der errado, ainda recebe a culpa por não ter feito exatamente igual. Esse é o caminho do obscurantismo.
Suscetível é a nossa salvação. Um mundo tão à mercê como esse está sujeito a transformações tão radicais que numa condição mais estruturada não ocorreriam. Mais que isso, a suscetibilidade não é de base natural, apesar dos riscos ambientais com os quais convivemos. Estamos falando de indivíduos carentes de uma direção, de uma receita para a vida, de uma perspectiva para ver o mundo. Esta é a suscetibilidade do mundo, a liquidez já anunciada está evaporando e se tornando tão volátil que permite reorganização em qualquer estrutura que lhe dê um pouco mais de equilíbrio. Vale aqui lembrar das teorias de evolução da consciência que preveem o rompimento da barreira do ego. Um salto desses não ocorre sem um trauma que o anteceda. Lembremos também das previsões de singularidade da inteligência artificial. É como se esperássemos uma transformação salvadora, porque, em geral, nos limitamos a espera-la, sem qualquer ação para governa-la. Mas como, se não governamos nem a nós mesmos atualmente? Se o vizinho faz, ou o concorrente faz, você também faz igual. Você duvida ainda da suscetibilidade dos indivíduos do mundo de hoje?
Esta é a visão de mundo que proponho para reflexão, um pouco como crítica e caricatura das várias já propostas por acrônimos e um pouco séria na argumentação.
Quem tem uma visão mais realista desse mundo (VUCA, BANI ou CAOS) dificilmente é otimista, mas pode ser esperançoso. Cientificamente, a história do homem caminha para a extinção, mas filosoficamente ela caminha para a plenitude. Neste aspecto, lembro que o CAOS nunca foi o fim, mas sempre foi o começo de tudo. “No começo, tudo era caos”. Se você foca no fim, não há o que fazer. Mas se foca no recomeço, há muito o que fazer. Comece!
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