A flexibilidade cognitiva está entre as dez principais habilidades requeridas do profissional do futuro. É o que diz o World Economic Forum em sua pesquisa para 2020 e parece que todos concordam com isso. Mas listar as dez habilidades é uma coisa, explicar cada uma delas já é outra. E aí é mais difícil conciliar entendimentos. Não que haja certos e errados, não é esse o ponto. É que o conceito é abrangente e, portanto, permite abordagens diversas. Então, cada um explica pelo viés conveniente, o que é perfeitamente compreensível.
Este é mais um dos textos em que tento achar a essência do conceito antes de buscar sua aplicação. Creio que compreender um conceito por uma sua aplicação particular é limitante e, às vezes, perigoso, pelo fato de que não favorece a flexibilidade cognitiva (é claro que usar aqui o próprio conceito em pauta foi uma provocação).
Vamos aos poucos...
Seu corpo tem flexibilidade? Há pessoas que se contorcem com imensa facilidade, outros são bastante rígidos. Essa diferença faz com que alguns executem certas atividades com tranquilidade, outros nem tanto. Há casos em que simplesmente não se consegue executar alguma coisa por falta de flexibilidade. Observe na academia as pessoas se exercitando, sobretudo nos alongamentos. Se preferir, experimente algumas sessões de Pilates e verá que o que parece fácil nem sempre é de fato.
Flexibilidade é a habilidade de se dobrar, curvar, vergar, arquear etc. E isso tudo basicamente indica alterar sua forma. E há um detalhe importante: flexibilidade não significa desmontar e remontar, significa conformar, ou seja, um mesmo objeto ou corpo passa por um processo de deformação para atingir uma nova forma. Há aqui uma necessária e evidente tensão! Alongue-se e perceba que, por mais flexível que seja, em algum momento seu corpo sentirá a tensão da mudança de forma. Ela existe em qualquer movimento (mudança de forma), mas dói apenas quando se aproxima dos nossos limites.
Então, flexibilidade é a habilidade de mudar de forma assimilando as tensões decorrentes disso. É mais flexível quem sofre menos com as tensões do processo (o verbo sofrer aqui foi proposital).
Agora, com o apoio do site Origem da Palavra, ao qual recorro com frequência:
Cognição é o substantivo referente ao ato de conhecer, cognitivo é o adjetivo que designa o que é relativo a esse ato; não há nenhuma confusão nisso.
Ambas as palavras vêm do Latim noscere, “saber, conhecer”, com o prefixo com, “junto” (www.origemdapalavra.com.br).
Para chegar ao ponto necessário, vou introduzir outros conceitos que nos ajudarão, recorrendo ainda ao Origem da Palavra. Na sequência refino os detalhes importantes:
1) Do Latim SAPERE, “conhecer, saber, sentir gosto”.
2) Do L. COGNOSCERE, “conhecer, saber”, formado por COM, “junto”, mais GNOSCERE, “obter conhecimento, chegar a saber”.
3) Do L. INTELLIGENTIA, “compreensão, capacidade de entender”, de INTELLIGERE, “entender, compreender”, formada por INTER-, “entre”, mais LEGERE, “escolher, separar o que interessa, ler”.
(www.origemdapalavra.com.br)
Você sabe a dor de uma queimadura apenas se já se queimou. Saber e sabor têm origem similar porque têm relação com os sentidos. Sabedoria é aquilo que se aprender pela vivência, experimentando na pele, como poderíamos dizer. Repare que é possível você saber alguma coisa, sem conseguir explicá-la. Saber não é necessariamente compreender.
Conhecer (que tem a ver com a palavra cognição, nosso foco) é chegar a saber não pela experiência, mas pela compreensão do processo que leva à percepção, à sensação. Posso nunca ter me queimado, mas estudando o que a queimadura faz no corpo e estabelecendo analogias com outros processos que vivenciei, posso compreender a dor, as reações etc. O conhecimento é uma construção, a sabedoria, uma constatação (que pode até ocorrer ao final de uma construção, se for devidamente apropriada).
Para não deixar a inteligência de fora dessa construção, escolher adequadamente entre alternativas (inter + legere) completa o processo do conhecimento.
Tentando resumir e juntar tudo, cognição tem a ver com o conhecimento construído a partir de boas escolhas (inteligência) no intuito de atingir o saber (experiência, ainda que simulada) sobre alguma questão que se coloca a nós.
Ou seja, é o que você tentou fazer durante a sua vida escolar, mas talvez nunca tenha analisado por esta ótica. Por isso, na educação se estuda o processo cognitivo, no qual a inteligência, a sabedoria e o conhecimento têm seus devidos lugares.
Voltemos à flexibilidade cognitiva...
Ter flexibilidade no processo de construção da sabedoria a partir do conhecimento (flexibilidade cognitiva) significa ser capaz de trilhar este processo por vários caminhos, conformando-o de acordo com a necessidade, o contexto etc.
Em suma, é isso. Mas, claro, é possível destrinchar e analisar mais o tema. E é isso que se faz comumente: trata-se dos desdobramentos dessa essência sem explicá-la, como se a essência fosse óbvia. Tenho minhas dúvidas se ela é óbvia até para quem a desdobra para os outros.
Quando se associa a flexibilidade cognitiva à expressão “pensar fora da caixa” refere-se à capacidade de explorar outros caminhos para construção de soluções. Costuma-se, por conveniência, associar isso a não se render às obviedades das soluções tradicionais para os problemas (e reforço que não acho essa abordagem por conveniência errada, apenas arriscada, pois é uma aplicação e não a essência). Fala-se de buscar outras soluções.
Fica então parecendo que flexibilidade cognitiva seja o mesmo que criatividade para resolver problemas, o que é um equívoco. Criatividade é uma atividade de criação, cognição é uma atividade de construção. É claro que a cognição ajuda a criatividade, pois favorece novas correlações, novas perspectivas etc. Mas é possível que uma pessoa tenha flexibilidade cognitiva, ou seja, seja capaz de percorrer outros caminhos de construção do conhecimento, mas precise, em geral, ser guiada para isso. A criatividade não é guiada (talvez, favorecida seja o melhor termo), ela guia (direciona talvez fosse melhor termo). Não é à toa que ela está também na lista de habilidades requeridas para o profissional do futuro, indicando que é diferente da flexibilidade cognitiva.
Entender os outros parece ser também flexibilidade cognitiva, mas nem sempre é. Volto à lista das dez habilidades do World Economic Forum para lembrar que consta nela a habilidade “empatia com os outros” (diferente da flexibilidade cognitiva). A flexibilidade cognitiva implica em construir conhecimento e, a partir dele, sabedoria. A empatia significa “sentir” os outros. Como se diz, colocar-se no lugar dele, vestir seus sapatos etc. É claro que isso é importante, mas não é cognição, embora se possa usar a experiência promovida pela empatia para construir algum conhecimento. Uma pessoa pode ser extremamente empática, mas ainda assim não ser capaz de construir sabedoria a partir dessa sua vivência. A cognição exige um processo de construção. A flexibilidade exige a adaptação (conformação) deste processo às circunstâncias. A empatia favorece isso pela percepção das circunstâncias relacionadas aos outros, mas não se confunde com a cognição.
Compreender como os outros pensam, entender seus pontos de vistas, parece ser flexibilidade cognitiva. Eu até diria que faz parte, mas não completa o que é necessário para ser cognição. Lembremos que cognição é um processo de “vir a saber”, ou seja, incorporar o conhecimento de tal forma que atinja status de sabedoria, aquilo que está atrelado à sua própria experiência. Assim, compreender os pensamentos dos outros é necessário, mas sobre ele é preciso pensar criticamente, construindo uma vivência própria que possa ser percebida como legitimamente sua. Mais uma vez, Pensamento Crítico é também uma das dez habilidades do profissional do futuro.
Talvez por isso essas habilidades pareçam se confundir, elas estão necessariamente interligadas, afinal são todas habilidades que um indivíduo tem em maior ou menor grau. Formam um conjunto complexo de habilidades que precisam ser gerenciadas, desenvolvidas, conscientizadas. Formar o profissional do futuro, portanto, não é tarefa simples. Pelo contrário, é um problema complexo, o que, aliás, nos remete à habilidade número um, listada pelo World Economic Forum (que aliás ocupava a mesma posição na pesquisa anterior, em 2015): Solução de Problemas Complexos.
Com o exposto até aqui não é difícil perceber que a habilidade de flexibilidade cognitiva tem papel importante nos processos de mudança. Aliás, o ambiente de mudança organizacional é um excelente ambiente para identificar esta habilidade nos profissionais. Resistir à mudança não é necessariamente sinal de baixa flexibilidade cognitiva, pois a resistência tem vários fundamentos. A identificação da falta de flexibilidade cognitiva está no fato de não se ter argumentos construtivos para explicar a resistência à mudança. A tradicional explicação “sempre fizemos assim” é exatamente o contrassenso da flexibilidade cognitiva, pois indica estagnação.
Se há uma resistência fundamentada à mudança, é preciso explicar por que o caminho da construção do novo entendimento (caminho de mudança proposto) está equivocado. Essa abordagem já indica, em si, a habilidade de compreender novos caminhos e certamente abre um caminho alternativo.
Ou seja, observe sua relação com a mudança. Resistir a ela não significa que você não tenha flexibilidade cognitiva, mas não saber explicar sua resistência estabelecendo boa crítica sobre os caminhos propostos já o coloca na condição de precisar desenvolver esta habilidade. Afinal, cognição, como vimos, é um processo de construção de sabedoria a partir do conhecimento e escolher entre alternativas mostra inteligência. Sem caminhos e sem escolhas a resistência é apenas fator limitante, afinal é a mudança que move o mundo e as organizações.
Perceba, então, que a flexibilidade cognitiva está na base do progresso. Por isso é uma das dez habilidades do profissional do futuro. Sem ela, o profissional fica preso no passado.
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