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Foto do escritorRenê Ruggeri

Já não se fazem mais gurus como antigamente

Hoje em dia é comum e até interessante que as pessoas recorram a frases de personagens importantes da história para sustentar algumas posições ou situações. Isso é normal e é feito, inclusive, metodologicamente nos meios científicos. Sem referências pregressas, qualquer manifestação perde robustez.


Alguns nomes são especialmente requisitados: aqueles expoentes das ciências, da filosofia ou das artes. Recentemente criamos uma categoria de expoentes, os dos negócios ou do empreendedorismo. Tínhamos poucos exemplares desses na história. Isso também é normal. Aliás, incluímos nesse grupo alguns que vieram emprestados dos esportes e do mundo digital. Esses últimos podem ter personalidades e até pensamentos diferentes quando no mundo real, como se o mundo digital fosse uma meia ficção (ou seria meia realidade?). Viva a transformação digital que está confundindo o próprio conceito do que é ser humano, mas isso é assunto para outra hora.


Com essa miríade de referências, algumas manifestações começaram a ficar bastante específicas ou bem limitadas no contexto, afinal, não se produz nesse ritmo tanto conteúdo significativo. Há personagens, normalmente os mais recentes na história (não que alguns mais antigos não possam estar em situação similar), que viveram e atuaram em condições, contextos e temas bem particulares. Sua produção intelectual foi considerável, senão não estariam entre os tais personagens históricos, mas foi específica (eventualmente o melhor termo seria “restrita” mesmo).


E aí nasce um problema para nós, usuários de referências normalmente na forma de citações. E, de fato, o problema é bem grave, pois essas referências influenciam nossa forma de pensar e, com o aprendizado via internet, nossas interpretações descontextualizadas e sem orientação de um tutor ou mestre se equivocam sem consciência disso. Acredite, tem gente que aprende coisas nos cursos disponíveis na internet, sem crivo rigoroso, e pautam sua vida a partir disso, como se estivesse certo. Relativizam não apenas a verdade (que epistemologicamente nunca é atingida), mas a construção histórica dela. “Se corrobora o que penso ou me dá algo o que pensar, está certo”, independente do que haja mais sobre o conteúdo por aí.


Você pode aprender, por exemplo, que Hitler é um caso exemplar de liderança e entender que ele deve ser seguido. Percebe o equívoco que há nisso? E foi um exemplo explícito de equívoco, há uma infinidade de outros mais sutis. Como gosto de dizer: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Hitler liderou, como vários outros, mesmo na história recente desse país; mas nem todos são dignos de serem seguidos. Você seguiria alguém apenas pelos seus discursos? Se respondeu não, pense agora quais líderes você segue apenas pelo discurso dele próprio ou de outros que falam sobre ele? Pense bem, muito provavelmente há um ou alguns.


Em casos menos problemáticos, você pode aprender que Marx era socialista e concluir que tudo o que ele escreveu é lixo. Afinal vivemos numa sociedade capitalista. Digo menos problemático porque, conforme sua linha de estudo, vai acabar aprendendo sobre a obra dele por tabela. Se der sorte, souber escolher bem ou não se render a discursos e conteúdos já tendenciosos, aprenderá boas interpretações. Para não ser acusado de politicamente tendencioso, afirmo que o mesmo pode acontecer com Mises, mas no sentido oposto, claro.


Ou ainda, aprenderá que Descartes ensinou a dividir os problemas para resolvê-los. Talvez esqueçam de avisá-lo que ele não pensou em usar o termo distinguir talvez porque considerasse desnecessário, afinal, a realidade é indivisível.


Atualmente, as teorias que lidam com a complexidade lutam pelo distinguir. Se der sorte, vão ensinar mais coisas sobre a obra dele, como o valor da dúvida. Isso mesmo, para Descartes o conhecimento nasce da dúvida e não da certeza (caso isso lhe soe familiar). Então, se alguém te ensina algo com convicção, aceitar essa certeza não produz conhecimento; duvide e vá atrás da sua própria convicção. Acreditar é uma questão de fé, conhecimento é razão. Se quer existir, pense (desculpe, não resisti ao trocadilho). Quem sabe alguém te alerte sobre o plano cartesiano, como uma produção também de Descartes, entre outras na matemática.


Cuidado, vão te ensinar que o avião foi criado por estrangeiros, que Santos Dumont não merece o título. Vá atrás, conclua por si mesmo. Se é importante pra você, verifique as datas, os feitos, os fatos documentados. Mas, por favor, não saia repetindo o que é mera crença, baseada na fé que tem em quem te contou. Se quer ensinar outros, crie seu próprio conhecimento. Ou então assuma preliminarmente que é fé e faça a devida ressalva.


E esse é o ponto deste texto: há uma infinidade de replicadores de conhecimento baseado em fé (que são, na realidade, crenças), conhecimento mal aprendido ou mal interpretado de outros replicadores e, o que é pior, ideias e pensamentos “vendidos” com base em interpretações errôneas de referências mal contextualizadas de personagens pouco estudados. Acho que é o que chamariam de superficialidade em termos contemporâneos. Talvez justificassem com base em uma tal liquidez do mundo.


Ninguém precisa conhecer tudo e todos para garantir suas referências coloquiais, mas, se vai usar isso para criar conteúdo para aprendizagem dos outros, é preciso ter mais cuidado e, porque não dizer, mais responsabilidade, conforme sua posição na “cadeia alimentar do conteúdo digital”.


Se você vai usar uma frase de alguém, certifique-se de que sua interpretação dela está correta, ou pelo menos, coerente com o que o dono da ideia quis dizer. Se você vai usar uma pessoa como exemplo, certifique-se de que ela se encaixa mesmo no modelo pretendido. Lembre-se que uma ideia equivocada não significa uma mente distorcida e vice-versa. A ideia e o autor dela não se confundem.


Sobretudo, lembre-se que uma frase não define uma pessoa ou seu pensamento, nem duas, ou três frases. Talvez, no máximo, indiquem um viés cognitivo qualquer desta pessoa. Isso vale para pensadores, empresários, políticos e quaisquer pessoas. Seja mais consistente na formulação de suas convicções e, como orienta Descartes, duvide sempre, até de você mesmo, para que possa continuar evoluindo na sua compreensão do mundo e não seja tomado pela soberba da falsa sabedoria. Não caia na armadilha de transformar conhecimento em crença. Conhecimento permite contraditório, alternativa, transformação, evolução; crença, não. As crenças você apenas substituídas, se for o caso.


Se vai usar D. Pedro como exemplo, tenha convicção de que o conhece o suficiente. Ou então cite um parente seu, sobre quem seu conhecimento é mais garantido e, portanto, a chance de errar é menor.


Se vai citar um pensador, saiba que as ideias deles não se confundem com a pessoa. Há quem combata um preconceito, mas lá no fundo, culturalmente, inconscientemente e dolorosamente, tenha as raízes dele na alma. Nossa capacidade de pensar pode estar relacionada à vida que levamos, mas não é essencialmente restringida por estas condições. Há quem pense com grande sabedoria, e tenha morrido louco. Nem por isso, suas ideias são insanas.


Se vai criar um juízo sobre algum pensador, há um detalhe importante e crítico: dê mais crédito aos antigos pensadores ainda referenciados. As razões para isso são várias:


1- A história credencia o pensador, caso contrário já o teria passado para o rol dos loucos e bobos. Pensadores reverenciados há centenas de anos não pensaram ou escreveram ideias voláteis.

2- Lembre-se que pensadores antigos não tinham computadores com editores de texto. Para colocar algo no papel, pensavam em demasia. Não eram adeptos do “errar rápido para aprender rápido”. O ritmo era outro e a qualidade da produção também. Não é à toa que o pensamento deles permanece até os dias de hoje. Há novas interpretações e contextualizações, mas poucas contestações.

3- A produção intelectual era menos compartimentada e pensadores antigos tendem a ter conhecimento mais amplo que os atuais. Não que isso seja uma verdade absoluta, mas é uma tendência. A compartimentação da produção intelectual sempre existiu, mas na atualidade ela é bem mais pronunciada. Ao tentar opinar em áreas alheias à produção intelectual mais conhecida, era comum que se produzisse ideias dignas de referência. Hoje em dia é comum produzir equívocos, dada a superficialidade do conhecimento geral. Não deixe o aparente eruditismo te enganar.

4- A reputação, a honra, o nome eram mais valorizados que hoje, o que impunha maior responsabilidade sobre a produção intelectual publicada. Pensadores antigos tinham mais segurança de suas ideias publicadas e, quando as mudavam, normalmente sabiam exatamente o porquê.


Por fim, lembre-se que pensadores de fato, não são pensadores em função do seu trabalho, ou da sua posição social, ou qualquer coisa circunstancial. São pessoas com capacidade superior de articulação de ideias, assim como esportistas de alto nível possuem capacidade cenestésica superior. Essa capacidade pode até ser potencializada por uma ocupação apropriada, mas não é a ocupação que a induz na pessoa. Ou você acha que Pelé aprendeu a jogar daquele jeito na internet? Aliás, pensadores de fato costumam ter consciência dessa sua competência especial e, por isso, produzem pensamentos. Não se tratar de ser cientista, dramaturgo, artista, esportista ou algo assim. Há milhões nestas ocupações e, obviamente, nem todos são pensadores dignos de referência, embora possam ser excelentes profissionais.


Um último detalhe: pensadores são maduros. Há gênios, claro, que se mostram já na juventude. Exceções que se contam nos dedos. Mas o normal, é que estes personagens, e suas ideias, a quem fazemos referências tenham se consolidado na maturidade. Duvide de pensadores que não tenham cabelo branco. Aliás, a dúvida já foi o conselho de Descartes, mesmo em relação aos “mestres”, só estou reforçando em razão da multiplicação deles.



Gurus candidatos a pensadores em nosso mundo de superficialidades, podem ser como Gremlins; cuidado ao alimentá-los. Exponha-os à luz e veja o que acontece!

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