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Colaboração é cultural, mas como se transforma a cultura?

Atualizado: 30 de mai.

Em minha área de atuação profissional (projetos na construção civil) todos falam há muito tempo sobre a necessidade de colaboração nos processos e trabalho contemporâneos e, em cima disso, que a colaboração é ou depende da existência de uma cultural apropriada. Eu mesmo bato nesta tecla há pelo menos uma década, eventualmente como questão subentendida quando falamos de integração de projetos.


Mas o que quase ninguém fala, na sequência destas constatações que já estão ficando óbvias, é como promover essa tal cultura da colaboração. Aliás, aparentemente, alguns conteúdos dão a entender que a colaboração é obtida com o compartilhamento de informações. Outros parecem crer que o uso de recursos tecnológicos para esse compartilhamento resolve a questão da colaboração. Enfim, percebe-se o problema, mas ao que tudo indica quase ninguém indica como resolvê-lo. Então, continuamos “batendo na mesma tecla” sem sair do lugar.


Uma observação é importante: O BIM reforçou bastante essa discussão, que já existia antes dele, mas surgia quase que apenas em abordagens mais profundas sobre os processos de trabalho, sobretudo no desenvolvimento de estudos e projetos de arquitetura e engenharia (mais precisamente designado por projeto do produto ou engenharia o produto num paralelo com o design de produto para a indústria de linha branca). A colaboração era tema mais frequente em pesquisas acadêmicas que, invariavelmente, o encontravam à medida que aprofundavam estudos sobre estes processos. As formas em que surgia variam, incluindo muitas vezes como subtema de coordenação de projetos.


Atualmente o tema borbulha em qualquer nível de abordagem. Mas um detalhe parece escapar: colaboração é uma questão comportamental e comportamento, em geral, não é tema do domínio da Arquitetura e Engenharia. Estamos aqui no domínio de ciências como psicologia (quando focado no indivíduo), sociologia, antropologia e até filosofia (quando generalizamos a perspectiva). Mas, é claro, direcionamos os fundamentos teóricos dessas áreas para o ambiente profissional ou corporativo quando falamos de trabalho.


Logo, a questão do trabalho colaborativo precisa ser abordada à luz dessas ciências (humanas) aplicadas sobre os processos de trabalho do nicho de mercado que se queria abordar (que pode ser qualquer um, incluindo a construção civil).


Tentemos evoluir nessa abordagem...


A formação de culturas é tópico importante em várias áreas do conhecimento como psicologia, sociologia, antropologia, filosofia e até economia, política e outros. Afinal, a cultura influencia os fenômenos em todas estas áreas.

Alguns pontos são atualmente importantes nas abordagens sobre a formação da cultura em um coletivo. Eles:


  • A relacionam com processos históricos e contextuais.

  • A abordam como prática, discurso e rede, e não como essência (por isso pode ser transformada).

  • Consideram a ação (reação) humana e as relações de poder.

  • Evitam a polarização de interpretações.

  • Dialogam inevitavelmente com tópicos como globalização, identidade e tecnologia.


Assim, se queremos entender a colaboração como questão cultural, precisamos:


  • Abordá-la como processo histórico e contextual, não como procedimento de trabalho.

  • Entende-la como um complexo composto não apenas por práticas (ações, hábitos, comportamentos), mas também discursos (linguagens, narrativas, símbolos, significados) e redes (interações, interdependência entre pessoas e, inclusive, com não-humanos).

  • Percebê-la também pelo aspecto do protagonismo individual, ou seja, ainda que o homem seja “produto do meio”, ele não o recebe passivamente, mas age ou reage em relação a ele.

  • Entender que as relações de poder influenciam a formação de culturas, ou seja, quem exerce mais poder tem mais condição de condicioná-la.


Em resumo e objetivamente: a colaboração se forma com o tempo e de formas diferentes (historicidade e contexto); concretiza-se em práticas, discursos em redes de relacionamento; transforma-se participativamente no grupo, mas sob influência dos que detém alguma fonte de poder.


Só aqui já fica claro que recursos de compartilhamento de informações são somente um subitem de uma das ideias centrais na abordagem da colaboração como cultura. Sozinho não é capaz de fomentar a (trans)formação cultural. Precisa ser usado sistematicamente e estrategicamente com os demais.


Mas é fundamental sermos rigorosos no entendimento do que é colaboração neste contexto. A colaboração é uma prática na qual agentes se apoiam para a obtenção de resultados. Como prática, ela é um elemento, uma manifestação visível e concreta da cultura, mas não é um fundamento da cultura, muito menos se confunde com ela. Podemos entender a colaboração como resultado de uma cultura, mas a cultura que promove a colaboração se sustenta em outros conceitos e ideias. Quais seriam, então?


Todo coletivo tem uma cultura própria desenvolvida e em constante transformação conforme vimos (historicidade, contextualidade, práticas, símbolos, narrativas, relações de poder etc.). Os membros do grupo compartilham fundamentos que recebem da vivência e trocas no próprio grupo. Estes fundamentos sustentam a cultura e derivam das experiências e aprendizados que, por sua vez, geram nos indivíduos as crenças sobre como devem pensar, agir, sentir, julgar etc. Esses fundamentos são basicamente (a importância e a influência de cada um estão entre parênteses):


  • Valores e Crenças (o que é desejável e verdadeiro; legitimado)

  • Normas Sociais (comportamento esperado; coesão)

  • Práticas e Rotinas (hábitos regulares; consolidação cultural)

  • Linguagem e Símbolos (expressão, identidade; preservação)

  • Relações de Poder (dinâmica interna; organização)

  • Dispositivos de Fronteira (ritos e processos de pertencimento; lealdade)

  • Narrativas e Memória (simbolismo; continuidade cultural)

  • Estruturas e Tecnologia (“atores coadjuvantes”, arranjos organizacionais, ferramentas; interações e trabalho)

  • Disposições Afetivas (qualidade das relações no grupo)

  • Capacidade Reflexiva (autocompreensão; adaptação e transformação)


Estes são os fundamentos que sustentam uma prática comportamental colaborativa. São vários e é neles que precisamos trabalhar para promover a desejada transformação cultural.


O complexo formado por estes fundamentos é sistêmico, ou seja, eles formam uma teia que conforma e transforma a cultura. Agir sobre um fundamento afeta os outros, mas é difícil ter controle sobre o resultado. Por isso é importante que se haja num conjunto deles para que as influências mútuas sejam convergentes e conduzam à mesma direção de transformação desejada.


Alguns fundamentos têm caráter mais gerador da cultura, outros são suportes que a consolidam. É importante, nos processos de transformação, atuar nos geradores para “brotar” as mudanças e nos de suporte para dar a ela condição de “crescer” e se sustentar.


Os fundamentos que podem gerar ou desencadear comportamentos colaborativos são: “Valores e Crenças”, “Relações de Poder” e “Disposições Afetivas”. As pessoas colaboraram porque acreditam ser o melhor, porque são influenciadas (ou induzidas) pelas relações de poder ou porque querem apoiar as outras pessoas do grupo. Cada indivíduo é mais influenciado conforme sua própria forma de pensar, sentir e agir (o autoconhecimento e o conhecimento profundo dos membros do grupo pelas lideranças passam a ser um diferencial neste processo).


Os fundamentos que ajudam a sustentar os comportamentos colaborativos são os demais, onde “Estrutura e Tecnologia” aparecem. Mas é preciso ter atenção, pois, se estes fundamentos não forem adequadamente trabalhados, podem surtir efeito inverso e frear ou reter a adoção dos novos comportamentos colaborativos.


Mas a transformação precisa necessariamente iniciar por uma ação de algum membro do grupo (normalmente detentor de algum poder) que dispara um ciclo que, encontrando as condições adequadas, se consolida. Este ciclo é ininterrupto, pois a cultura se transforma naturalmente mediante qualquer ação de qualquer membro. Tomemos a seguinte representação do ciclo:

 

 

É importante reparar em alguns aspectos implícitos no ciclo:


  • ·Não é circular, mas espiral, uma vez que nunca retorna ao mesmo ponto.

  • Deixa claro que a realidade não flui de forma laminar e que há tensões e resistência (turbulência) no processo.

  • Há aspectos individuais, coletivos (grupais) e sistêmicos (organização), o que expõe um processo de mudança em três níveis de gestão (que os tecnicistas da gestão não confundam com estratégico, tático e operacional).

  • Explicita que a cultura é moldada pelas narrativas e simbolismos que emergem do processo e não pelas práticas.


Concluindo, se queremos abordar a colaboração como aspecto de uma cultura, buscando formas de promover esta transformação, precisamos abordá-la com base no conhecimento que, de fato, nos fornece os meios de influenciá-la (raramente de controlá-la) de forma gerenciada.


No ambiente da construção civil, pensar em processos de produção, ferramentas tecnológicas de produção, estruturação de informações etc. pode até contribuir como parte do fundamento “Estrutura e Tecnologia”, mas repare que ele sequer surge no ciclo por ser coadjuvante neste processo que é essencialmente sócio humano.

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