top of page

300 anos para separar… e você acha que é fácil reunir?

A evolução do pensamento: da unidade à fragmentação

 

Na Grécia Antiga, o conhecimento era essencialmente integrado. Pensadores como Aristóteles (384–322 a.C.) transitavam da ética à biologia, da política à lógica, sem a compartimentalização característica dos tempos modernos.

 

Durante a Idade Média, o domínio da Igreja sobre o conhecimento impôs um viés dogmático. O acesso à educação era restrito e o saber circulava sob rígidos controles, com pouca margem para a crítica. Foram séculos em que uns poucos afirmavam o que era tido como verdade e milhões simplesmente a aceitavam, incapazes que eram de criticar.

 

O Renascimento (séculos XIV a XVI) marca um renascimento da racionalidade e da autonomia intelectual. Leonardo da Vinci (1452–1519), com sua genialidade, é exemplar: artista, engenheiro e inventor, reunia múltiplos saberes numa prática integrada. No entanto, já nesse período emergem sinais de uma incipiente diferenciação disciplinar, como mostram as obras “Sobre a Arte de Construir” (Leon Battista Alberti, c. 1450) e “Os Quatro Livros da Arquitetura” (Andrea Palladio, 1570), que estruturam a Arquitetura como campo teórico específico.

 

Compartimentalização do conhecimento

 

O século XVII impulsiona a sistematização do método científico. René Descartes (1596–1650), com o "Discurso do Método" (1637), propõe dividir problemas complexos em partes mais simples, inaugurando uma forma de pensamento analítico que orientaria a ciência moderna. Paralelamente, Galileu Galilei (1564–1642) enfatiza a experimentação e a observação empírica como bases do conhecimento.

 

Esse novo paradigma, embora poderoso, semeou a fragmentação do saber. A Revolução Científica e, posteriormente, a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX) exigiram especialização técnica para atender às demandas produtivas e militares.

 

Nesse contexto, a Arquitetura e a Engenharia consolidaram-se como campos separados. A criação da Académie Royale d'Architecture na França (1671) por iniciativa de Luís XIV marca o primeiro curso formal de Arquitetura. No século XVIII, surgem as primeiras escolas de Engenharia: a École Polytechnique (França, 1794) e a Institution of Civil Engineers (Inglaterra, 1818).

 

No Brasil, a formação em Engenharia teve início em 1810, com as Reais Academias de Artilharia, Fortificação e Desenho no Rio de Janeiro e na Bahia. Posteriormente, destacam-se a fundação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1874) e da Escola de Minas de Ouro Preto (1876). O primeiro curso formal de Arquitetura foi criado em 1877, na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (atualmente vinculada à UFRJ).

 

A estruturação da separação: não apenas conteúdos, mas formas de pensar

 

A fragmentação não foi apenas organizacional ou curricular: transformou-se numa estrutura profunda de pensamento. A orientação cartesiana — de dividir para compreender — moldou não apenas a ciência, mas a própria forma de pensar ocidental.

 

No século XIX, a filosofia positivista (Auguste Comte) reforçou a hierarquia das ciências, colocando as naturais acima das sociais e humanas, acentuando divisões. Já no século XX, o Círculo de Viena (década de 1920) esboçou banir a metafísica da filosofia, promovendo uma visão estritamente empirista e lógica.

 

Assim, a separação consolidou-se em múltiplos níveis: entre disciplinas, entre ciências "puras" e "aplicadas", entre o "físico" e o "social", o "objetivo" e o "subjetivo".

 

Essa compartimentalização, embora tenha permitido avanços impressionantes, trouxe também consequências: isolamento de saberes, dificuldades de comunicação entre áreas e uma formação acadêmica que frequentemente exclui aspectos essenciais para a compreensão holística da realidade.

 

O esgotamento do modelo fragmentado

 

No século XXI, evidencia-se uma crescente insuficiência desse modelo fragmentado para lidar com os desafios contemporâneos: crises ambientais, pandemias, desigualdades sociais e a transformação digital exigem abordagens integradas e interdisciplinares.

 

Por outro lado, a formação acadêmica tradicional continua promovendo uma especialização excessiva, formando profissionais com profundo conhecimento em nichos, mas com dificuldade de colaborar e de compreender sistemas complexos.

 

A colaboração depende de um "sombreamento de repertórios": quando os saberes se tocam, surgem consensos e soluções criativas. Sua ausência gera conflitos, ruídos e ineficiências.

 

O movimento de reintegração: tendências contemporâneas

 

Frente a essas limitações, emergem diversas iniciativas que buscam reintegrar o conhecimento e desenvolver uma visão mais sistêmica.

 

  • Na esfera filosófica: a Teoria da Complexidade (Edgar Morin) com sua abordagem que distingue, mas não isola; a Teoria Integral (Ken Wilber) com sua estrutura que integra subjetivo, objetivo, individual e coletivo; a Transdisciplinaridade (Basarab Nicolescu), com enfoque mais aplicado, com sua proposta de superação das fronteiras disciplinares.

  • Na esfera educacional: STEAM nas ciências e engenharias; a Educação 5.0 contemplando competências socioemocionais, ética e cidadania global.

  • Na esfera produtiva: o BIM (Building Information Modeling) realizando o ideal da Engenharia Simultânea; a Biotecnologia fundindo ciências biológicas, engenharia e informática; a Inteligência Artificial acumulando e organizando vastos volumes de conhecimento para potencializar a interação humano-máquina.

 

Desafios da reintegração: competências para o século XXI

 

Reunir o que foi separado não é apenas uma questão curricular, mas uma necessidade do próprio conhecimento em sua evolução. Envolve desenvolver:

 

  • Capacidade de síntese: integrar múltiplos saberes de forma coerente.

  • Competências socioemocionais: colaboração, empatia, comunicação.

  • Pensamento crítico e sistêmico: compreender contextos complexos e dinâmicos.

 

Essa reintegração exige mudanças na formação humana e acadêmica, nas práticas produtivas profissionais, nos modelos sociais e organizacionais.

 

Considerações finais: um caminho longo, mas inevitável

 

Levou cerca de 300 anos para consolidar a separação entre os saberes. Não será simples ou rápido revertê-la. Talvez não sejam necessários mais três séculos, mas certamente mais de uma geração.


Trata-se de um processo histórico, cultural e de estruturação de conhecimento profundo, que exige visão de longo prazo e ações articuladas em múltiplas frentes.

Como bem sugere a Teoria Integral, não é uma ação isolada que promoverá a mudança, mas a convergência de múltiplas iniciativas, influenciando-se mutuamente.


A espiral da história não para. Vivemos um ciclo da estruturação do conhecimento que atravessa novamente um período de integração, depois de superar um ciclo necessário de diferenciação. Aliás, estes ciclos foram identificados e caracterizados também pela Teoria da Espiral Dinâmica (Graves, Beck, Cowan), uma abordagem bastante contemporânea em plena expansão.

 

Epílogo: para refletir

 

A separação foi uma conquista — permitiu o avanço científico e tecnológico. Mas, como toda conquista, gerou efeitos colaterais. O desafio contemporâneo é não negar a especialização, mas transcender suas limitações, integrando saberes para promover um desenvolvimento mais integral, ou seja, para indivíduos, coletivos, natureza e sociedade.

Comments


© Copyright  2018 por Renê Ruggeri. Desenvolvido por DXP Digital

bottom of page